Uma cineasta imagina um Japão distópico onde idosos se voluntariam para morrer

A premissa do filme de Chie Hayakawa, ‘Plan 75′, é um esforço do governo para sacrificar idosos; em uma sociedade que envelhece rapidamente, alguns também se perguntam: o filme é premonitório?

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Por Motoko Rich
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - TÓQUIO - A diretora de cinema japonesa Chie Hayakawa estava germinando a ideia de um roteiro quando decidiu testar sua premissa em amigos idosos de sua mãe e outros conhecidos. Sua pergunta: Se o governo patrocinasse um programa de eutanásia para pessoas com 75 anos ou mais, você concordaria?

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“A maioria das pessoas foi muito positiva sobre isso”, disse Hayakawa. “Eles não queriam ser um fardo para outras pessoas ou para seus filhos.”

Para Hayakawa, a resposta aparentemente chocante foi um reflexo poderoso da cultura e da demografia do Japão. Em seu primeiro longa-metragem, Plan 75, que ganhou uma distinção especial no Festival de Cinema de Cannes, o governo de um futuro próximo no Japão promove mortes silenciosas institucionalizadas e enterros em grupo para idosos solitários, com vendedores alegres apresentando a eles a ideia como se estivessem vendendo seguros de viagem.

Chie Hayakawa fez um filme distópico que muitas pessoas acreditam que pode ser o real futuro de uma nação que está envelhecendo. Foto: Noriko Hayashi/The New York Times

“A mentalidade é que, se o governo lhe disser para fazer algo, você deve fazê-lo”, disse Hayakawa, 45, em uma entrevista em Tóquio antes da estreia do filme no Japão (. Seguir as regras e não abusar dos outros, ela disse, são imperativos culturais “que garantem que você não se destaque em um ambiente de grupo”.

Com um toque lírico e discreto, Hayakawa enfrentou um dos maiores elefantes na sala no Japão: os desafios de lidar com a sociedade mais velha do mundo.

A eutanásia é ilegal no país, mas ocasionalmente surge em contextos criminais terríveis. Em 2016, um homem matou 19 pessoas enquanto elas dormiam em um centro para pessoas com deficiência nos arredores de Tóquio, alegando que essas pessoas deveriam ser sacrificadas porque “têm extrema dificuldade em viver em casa ou ser ativas na sociedade”.

O terrível incidente forneceu a semente de uma ideia para Hayakawa. “Não acho que tenha sido um incidente isolado ou um processo de reflexão dentro da sociedade japonesa”, ela disse. “Já estava no ar. Eu estava com muito medo de que o Japão estivesse se transformando em uma sociedade muito intolerante.”

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Para Kaori Shoji, que escreveu sobre cinema e artes para o The Japan Times e a BBC e viu uma versão anterior de Plan 75, o filme não parecia distópico. “Ela está apenas contando como é”, disse Shoji. “Ela está nos dizendo: ‘É para onde estamos indo, na verdade’.”

Filha de funcionários públicos, Hayakawa começou a fazer seus próprios livros ilustrados e a escrever poemas desde muito jovem. Na escola, ela se apaixonou por Muddy River, um drama japonês sobre uma família pobre que vive em um barco no rio. O filme, dirigido por Kohei Oguri, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1982.

“Os sentimentos que não consegui colocar em palavras foram expressos naquele filme”, disse Hayakawa. “E eu pensei, eu quero fazer filmes assim também.”

Ela finalmente se inscreveu no programa de cinema da Escola de Artes Visuais de Nova York, acreditando que obteria uma base melhor na produção de filmes nos Estados Unidos. Mas, dadas suas modestas habilidades em inglês, ela decidiu, uma semana depois de chegar ao campus, mudar para o departamento de fotografia, porque achou que poderia tirar fotos sozinha.

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Seus instrutores ficaram impressionados com sua curiosidade e ética de trabalho. “Se eu mencionasse um filme informalmente, ela iria para casa e iria alugá-lo, e se eu mencionasse um artista ou exposição, ela iria pesquisar e ter algo a dizer sobre isso”, disse Tim Maul, fotógrafo e um dos mentores de Hayakawa. “Chie era alguém que realmente tinha vontade e um impulso singular.”

Depois de se formar em 2001, Hayakawa teve seus dois filhos em Nova York. Em 2008, ela e seu marido, o pintor Katsumi Hayakawa, decidiram retornar a Tóquio, onde começou a trabalhar na WOWOW, uma emissora via satélite, ajudando a preparar filmes americanos para exibição japonesa.

Aos 36 anos, ela se matriculou em um programa de cinema de um ano em uma escola noturna em Tóquio, continuando a trabalhar durante o dia. “Senti que não poderia colocar toda a minha energia na criação dos filhos ou na produção de filmes”, ela disse . Olhando para trás, ela disse: “Eu diria a mim mesma que está tudo bem, apenas divirta-se criando seus filhos. Você pode começar a fazer filmes mais tarde.”

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Para seu projeto final, ela fez Niagara, sobre uma jovem que descobre, quando está prestes a deixar o orfanato onde cresceu, que seu avô matou seus pais e que sua avó, que ela pensava ter morrido em um acidente de carro com seus pais, estava viva.

Ela inscreveu o filme no Festival de Cinema de Cannes na categoria de trabalhos estudantis e ficou chocada quando ele foi selecionado para exibição em 2014. No festival, Hayakawa conheceu Eiko Mizuno-Gray, um publicitário do ramo do cinema, que posteriormente convidou Hayakawa para fazer um curta com o tema: Japão 10 anos no futuro. Faria parte de uma antologia produzida por Hirokazu Kore-eda, o celebrado diretor japonês.

Hayakawa já vinha desenvolvendo a ideia de Plan 75 como um longa-metragem, mas decidiu fazer uma versão resumida para a antologia Ten Years Japan.

Hayakawa decidiu adotar um tom mais sutil para o longa-metragem e injetar mais esperança. Ela também acrescentou várias vertentes narrativas, incluindo uma sobre uma mulher idosa e seu coeso grupo de amigos, e outra sobre uma cuidadora filipina que trabalha em um dos centros de eutanásia.

Ela incluiu cenas da comunidade filipina no Japão, disse Hayakawa, como um contraste com a cultura dominante. “A cultura deles é que, se alguém está com problemas, você os ajuda imediatamente”, disse Hayakawa. “Acho que isso é algo que o Japão está perdendo.”

Stefanie Arianne, filha de pai japonês e mãe filipina que interpreta Maria, a cuidadora, disse que Hayakawa pediu que ela mostrasse contenção emocional. Em uma cena, disse Arianne, ela teve o instinto de derramar lágrimas, “mas com Chie, ela realmente me desafiou a não chorar”.

Hayakawa disse que não queria fazer um filme que simplesmente considerasse a eutanásia certa ou errada. “Acho que o tipo de fim de vida e o tipo de morte que você quer é uma decisão muito pessoal”, ela disse. “Não acho que seja algo tão definido.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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