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Descoberta arqueológica revela com era a vida cotidiana na Idade do Bronze na Inglaterra

Os restos extraordinariamente preservados de um assentamento oferecem um vislumbre de uma vida doméstica ‘colorida, rica, variada’ por volta de 850 a.C.

Por Franz Lidz (The New York Times)

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três milênios atrás, uma pequena e próspera comunidade agrícola floresceu por um breve período nos pântanos de água doce do leste da Inglaterra. Seus habitantes viviam em um conjunto de casas de palha construídas sobre palafitas de madeira em um braço do Rio Nene, que deságua no Mar do Norte. Eles usavam roupas de linho fino com pregas e bainhas; faziam permutas com contas de vidro e âmbar importadas de lugares tão distantes quanto o atual Irã; bebiam em delicadas xícaras de barro com formato de papoula; comiam perna de javali e carne de veado glaceada com mel e davam os restos de comida para os cães.

Pedreira Must Farm, um sítio da Idade do Bronze localizado em um canal fluvial no leste da Inglaterra. "Em alguns momentos, escavar o local parecia um pouco rude e intrusivo, como se tivéssemos chegado após uma tragédia", disse Mark Knight, o diretor do projeto. Foto: Cambridge Archaeological Unit/The New York Times

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Um ano depois de sua construção, esse idílio pré-histórico teve um fim dramático. Um incêndio catastrófico destruiu o complexo; as construções desabaram e os moradores fugiram, abandonando roupas, ferramentas e armas. Tudo, até mesmo o mingau deixado nas panelas, caiu pelos pisos de vime em chamas sobre o pântano de junco e lá ficou. Com o tempo, os objetos afundaram, escondidos e sepultados sob mais de 2 metros de turfa e lodo. O rio aos poucos se afastou do acampamento, mas os detritos permaneceram intactos por quase 3 mil anos, preservando um registro da vida cotidiana no final da Idade do Bronze da Grã-Bretanha, de 2.500 a 800 a.C.

Esse momento congelado no tempo é o tema de duas monografias publicadas na terça-feira pela Universidade de Cambridge. Com dados de uma escavação de dez meses no que hoje é conhecido como Must Farm Quarry, um assentamento submerso e soberbamente preservado à sombra de uma fábrica de batatas fritas a 120 quilômetros ao norte de Londres, os estudos são tão detalhados quanto um relatório de investigação forense de uma cena de crime. Um dos artigos, uma síntese do local, tem 323 páginas; o outro, para especialistas, tem quase mil páginas a mais.

“Não parecia arqueologia”, disse Mark Knight, diretor do projeto e um dos autores dos artigos. “Às vezes, a escavação parecia meio rude e intrusiva, como se tivéssemos aparecido depois de uma tragédia, vasculhando os pertences das pessoas e vislumbrando o que eles fizeram um certo dia em 850 a.C.”.

Grãos carbonizados dentro de um pote. Foto: Cambridge Archaeological Unit/The New York Times

Em geral, as evidências da vida na Idade do Bronze da Grã-Bretanha vêm de locais fortificados e religiosos, encontrados sobretudo em paisagens altas e secas. A maior parte das pistas se apresenta na forma de ossos, cerâmica e ferramentas de sílex. “Geralmente, temos que trabalhar com pequenos fragmentos e restos de casas pouco visíveis, temos que ler nas entrelinhas”, disse Harry Fokkens, arqueólogo da Universidade de Leiden. É preciso um tanto de imaginação para convencer alguém de que esses lugares já foram assentamentos prósperos.

Paul Pettitt, arqueólogo paleolítico da Universidade de Durham que não participou dos novos estudos, disse que a monografia – um estudo de caso de preservação excepcional combinada com escavações altamente qualificadas – lembra que a domesticidade naquele período era “colorida, rica e variada, não era só um monte de armas de metal, como sugere o amor das pessoas pela detecção de metais”.

Atoleiro

Francis Pryor, arqueólogo britânico mais conhecido pela descoberta de Flag Fen, sítio da Idade do Bronze a cerca de 2 quilômetros de Must Farm, em 1982, acrescentou: “O relatório sobre Must Farm está transformando nossa compreensão da sociedade britânica no milênio anterior à conquista romana, 2 mil anos atrás. Longe de serem primitivas, as comunidades da Idade do Bronze viviam em harmonia com seus vizinhos, aproveitando a vida em casas quentes e secas, com uma alimentação excelente”.

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Até uma década atrás, a chamada Pompeia do Pântano estava enterrada em uma pedreira de argila. Acredita-se que o vilarejo original tinha o dobro do tamanho – a mineração do século 20 destruiu metade do sítio arqueológico – e pode ter abrigado várias dezenas de pessoas em unidades familiares.

O que restou foram quatro casas redondas e uma pequena estrutura quadrada, erguida sobre uma plataforma de madeira e cercada por uma paliçada de 1,8 m de altura de toras de freixo afiado – uma barreira para defesa, sem dúvida. A madeira verde, as lascas de madeira fresca e a ausência de reparos, reconstruções ou danos causados por insetos sugerem que o complexo era relativamente novo na época do incêndio.

Uma conta de âmbar encontrada no local. Foto: Cambridge Archaeological Unit/The New York Times

Uma análise dos anéis de crescimento mais externos da madeira queimada indicou o final do outono ou o início do inverno como a data de início, enquanto os esqueletos de cordeiros de 3 a 6 meses de idade e as larvas carbonizadas de uma espécie local de besouro sugeriram que o assentamento foi destruído no verão ou no início do outono.

Ao reunir a cultura material desses antigos bretões, o estudo revela como foram construídas as casas e os utensílios domésticos dentro delas, o que os moradores comiam e como suas roupas eram feitas.

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Entre outras coisas, os arqueólogos desenterraram 180 itens têxteis e de fibra (fios, tecidos, redes de nós), 160 artefatos de madeira (bobinas, bancos, suportes para ferramentas e rodas de metal), 120 vasos de cerâmica (tigelas, jarros, jarras) e 90 peças de metal (foices, machados, cinzéis, uma adaga, uma lâmina para cortar cabelos). As contas que faziam parte de um colar elaborado indicaram um nível de sofisticação raramente associado à Inglaterra da Idade do Bronze.

Mosquitos e mingau frio

O interesse em Must Farm foi despertado pela primeira vez em 1999, quando um arqueólogo da Universidade de Cambridge notou uma série de toras de carvalho saindo dos leitos de argila da pedreira. A dendrocronologia datou as toras da pré-história, e a empolgação aumentou quando as escavações preliminares descobriram armadilhas para peixes, espadas de bronze e pontas de lança.

A descoberta de nove barcos de toras – canoas de até 9 metros de comprimento – enterrados na lama deu um vislumbre dos vastos pântanos que outrora cobriam a região. “Devem ter acontecido muitas viagens de barco pelos pântanos até às florestas durante a curta vida do local”, disse Chris Wakefield, arqueólogo do projeto. “No verão, isso significava atravessar nuvens de mosquitos”.

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Fragmentos de tecido encontrados no local.  Foto: Cambridge Archaeological Unit/The New York Times

Uma investigação em grande escala conduzida pela Universidade de Cambridge em 2015 e 2016 expôs a cerca de paliçada, algumas passarelas leves, as ruínas do telhado de uma casa e paredes feitas de galhos de salgueiro trançados. A maneira como as madeiras caíram – algumas verticalmente, outras em linhas geométricas estranhas – permitiu que os pesquisadores mapeassem o layout da arquitetura circular. Uma das casas tinha cerca de 45 metros quadrados de área útil e parecia ter “zonas de atividade” distintas, comparáveis aos cômodos de uma casa moderna.

Armazenados no que presumivelmente era a cozinha de uma delas havia facas de bronze, pratos de madeira e potes de barro, alguns dos quais estavam encaixados uns nos outros. “Parece que havia uma estética simples, coerente e unificada”, disse Knight. Uma tigela de barro com as impressões digitais de seu criador ainda continha uma última refeição: mingau de trigo misturado com gordura animal, possivelmente de uma cabra ou de um cervo-vermelho. Uma espátula estava apoiada na parte interna do prato.

O trabalho artesanal das relíquias recuperadas e a presença de barcos de madeira, talvez o único meio de transporte confiável, levaram os pesquisadores a concluir que, em vez de um posto avançado e isolado, o local talvez tenha sido um movimentado centro comercial. “A sensação é de que esses habitantes do pântano estavam no topo de sua sociedade e tinham acesso a tudo o que era disponível naquela época”, disse Knight. “No final da Idade do Bronze, os rios do leste da Inglaterra eram o local ideal para o comércio e as conexões. Locais como Stonehenge agora estavam na periferia”.

Duas perguntas ficaram sem resposta nas minuciosas monografias de Cambridge: o incêndio foi resultado de um acidente ou de um ataque de rivais que podem ter invejado a riqueza dos moradores? E por que ninguém na Idade do Bronze se deu ao trabalho de recuperar todo aquele material?

“Um assentamento como esse teria uma vida útil de uma geração, talvez, e as pessoas que o construíram claramente já tinham construído outros locais semelhantes”, disse David Gibson, arqueólogo de Cambridge que colaborou com o estudo. “Pode ser que, depois do incêndio, eles simplesmente tenham começado de novo”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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