PUBLICIDADE

‘O que Lula falou é um desvio ao que ele vinha construindo’, diz assessor do Instituto Brasil-Israel

Declaração do presidente brasileiro que faz paralelo entre guerra de Israel na Faixa de Gaza e Holocausto é considerada antissemita

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Henrique Gomes
Atualização:
Foto: Instituto Brasil Israel
Entrevista comDaniel DouekAssessor especial do Instituto Brasil-Israel, cientista social e Mestre em Letras pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes da USP

A declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que afirma não haver precedentes históricos à guerra de Israel na Faixa de Gaza exceto pelo Holocausto iniciou uma crise diplomática sem precedentes desde o começo do conflito em 7 de outubro do ano passado. Apesar de criticar as ações de Israel contra os palestinos desde a resposta israelense ao ataque terrorista do Hamas, a declaração desta vez o fez ser considerado ‘persona non grata’ por Israel.

O título tem o efeito simbólico de expressar o descontentamento de Israel com as declarações do presidente. Na avaliação de Daniel Douek, assessor especial do Instituto Brasil-Israel, cientista social e Mestre em Letras pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes da USP, a fala de Lula fugiu do tom comumente adotado e fez eco “a uma opinião presidente entre setores da esquerda”.

Segundo Douek, um dos maiores problemas da declaração é apagar os inúmeros episódios de violência que há na história para traçar o paralelo da guerra em Gaza com o Holocausto – segundo Lula, o único precedente na história à violência no enclave, que deixou mais de 25 mil civis mortos, é o massacre de judeus pela Alemanha nazista. “Como pode o presidente do Brasil, um país que foi fundado nos escombros de um genocídio, o genocídio indígena, dizer que não há situações de violência como aquela que se vê em Gaza?”, questionou. Leia a entrevista completa:

Presidente Lula durante abertura da Cúpula da União Africana em Adis Abeba, Etiópia; após cerimônia, presidente comparou ação de Israel na faixa de Gaza com ações de Hitler contra judeus Foto: Ricardo Stuckert / PR

Como o senhor avalia a declaração do presidente Lula que faz o paralelo entre a guerra na Faixa de Gaza e o Holocausto?

As falas do Lula em relação a esse assunto vinham sendo muito corretas. Lula tem denunciado o massacre do Hamas contra os israelenses, tem falado dos reféns israelenses que foram sequestrados sob grupos terroristas e vem defendendo criação de um Estado palestino ao lado de Israel. Essa é a posição histórica do Brasil, na qual o Lula tem defendido do primeiro mandato até hoje. Quando o Lula lê o discurso diplomático, em geral é esse o posicionamento. O que o Lula falou ontem é um desvio com relação ao que ele vinha construindo. Em uma fala de improviso, ele acabou fazendo eco em uma opinião que está presente entre setores de esquerda, que faz o paralelo entre Israel e a Alemanha nazista. Ele precisa ser criticado, mas é preciso olhar e considerar essas posições anteriores.

O Brasil retrocede e perde legitimidade em atuar nas questões relacionadas a Gaza após essa declaração?

O Brasil não tem sido visto como um mediador neutro. O Brasil é percebido pelos israelenses com posições mais pró-Palestina. O episódio de ontem reforça essa percepção do Brasil um ator que não é uma potência global, mas é um ator que tem uma liderança regional e se posiciona pró-Palestina. Esse incidente diplomático pode atrapalhar o trânsito com Israel, mas me parece que isso depende de como Lula e o Itamaraty vão responder as críticas, vão se posicionar com relação as críticas. Isso vai definir os próximos passos. a gente precisa aguardar um pouco essa manifestação do governo brasileiro, depois dos encontros com embaixadores, que aconteceu na manhã de hoje.

Quais consequências o título de ‘persona non grata’ dada por Israel a Lula tem para ele enquanto chefe de Estado?

Isso tem um peso simbólico, mais que prático ou diplomático, com o modo pelo qual Israel manifesta insatisfação com relação as declarações do presidente. As principais autoridades do Estado se manifestaram com relação a isso, e algumas instituições também. Até instituições centrais, como Yad Vashem, o mais importante memorial sobre o Holocausto.

Acredita que ele será processado por antissemitismo?

Há fóruns específicos que pessoas sejam acusados por isso, mas acho que isso não vai além. A declaração tem sido instrumentalizada por grupos de direita, tanto em Israel quanto aqui no Brasil, que a utilizam para avançar seus próprios projetos políticos nacionais. O grande problema da declaração, que é antissemita, é que o antissemitismo se expressa em termos de dar ‘superpoderes’ dos judeus. Os judeus são traduzidos praticamente em uma lógica racial na qual passaram de serem considerados não-brancos no passado para serem considerados brancos hoje. Mais do que isso, ‘superbrancos’ ou ‘hiperbrancos’.

Publicidade

Como pode o presidente do Brasil, um país que foi fundado nos escombros de um genocídio, o genocídio indígena, dizer que não há situações de violência como aquela que se vê em Gaza? Existem inúmeras situações como aquela, inclusive no próprio Brasil. Que tipo de linearidade é essa que ele travou entre nazismo e Gaza? Qual a razão desse “esquecimento” de todo o histórico de violência, inclusive no país que ele lidera? Se cria uma linearidade acusando o Estado de Israel de perpetuar no presente aquilo que no passado foi perpetuado pelos nazistas, quase como dizendo que os judeus são os nazistas do presente, reforçando esse ‘superpoder’ e ‘hiperbranquialização’ da qual me referi.

Se lembra dos genocídios do qual os judeus foram as vítimas justamente para traçar o paralelo da vítima transformando-se no algoz.

Quando se fala em instrumentalização por parte da direita, como o senhor avalia que isso tem sido feito?

Israel se tornou um símbolo para vários setores conservadores e de direita, não só no Brasil, mas muito aqui. a gente viu isso bastante durante o governo Bolsonaro, que aparece nas lives usando camiseta do estado de Israel, a Michelle Bolsonaro foi votar vestindo uma camisa de Israel... de fato, Israel se tornou um símbolo para alavancar valores conservadores aqui no Brasil. Por mais que haja essa ideia que Israel seja um país conservador, isso é controverso. Nos costumes, Israel é um país liberal, contrário aos valores que esses setores promovem. Como Israel mobiliza muito os setores tanto de direita quanto de esquerda, os grupos utilizam o país para mobilizar as suas próprias bases. Tanto a esquerda quanto a direita veem Israel e o destino de Israel como parte do destino de suas lutas, como se aquilo que acontece em Israel fosse definidor do sucesso ou do fracasso de suas próprias pautas. Daí que quando o Lula dá uma declaração dessa, esses grupos se aproveitam, às vezes exagerando, às vezes deturpando, mas principalmente tornando essa pauta prioritária com relação ao que está acontecendo em Gaza e Israel, a despeito das questões humanitárias das quais Lula chamava atenção, a despeito das tragédias que está caracterizando essas sociedades.

E em Israel, no momento em que o país enfrenta uma pressão internacional enorme por parte da campanha em Gaza, como o repúdio a essa declaração do presidente pode ser instrumentalizado?

O governo de Israel tem buscado de todas as formas legitimar a sua ação em Gaza, que no primeiro momento contava com amplo apoio internacional, e agora não conta mais. Acho que por um lado existe a legitimidade na queixa de Israel com relação ao Lula, que é um equívoco histórico e alimenta o antissemitismo caracterizando o Estado Judeu como um retrato como o maior algoz dos judeus, que é Adolf Hitler e a Alemanha nazista. Ainda que essa queixa tenha legitimidade, não podemos esquecer que Israel está buscando legitimidade em uma ação que é sim passível de questionamento. Não há condições de Israel libertar reféns poupando vidas de palestinos? Essa é uma questão aberta. Então, se utiliza uma questão legítima para tentar legitimar uma ação que é passível de questionamento. Existe esse jogo por parte de todos os atores.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.