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Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Haiti já foi potência econômica com ampla influência geopolítica, mas hoje vive colapso

Crise atual no país caribenho faz esquecer que a Revolução Haitiana foi um dos eventos mais relevantes da história dos Direitos Humanos e da democracia

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O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

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A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

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De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

Opinião por Oliver Stuenkel

Analista político e Professor de Relações Internacionais da FGV-SP

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