Opinião | Por que a crise da Venezuela ameaça polarizar ainda mais a política da América Latina?

Independente de como a crise evolua, a cooperação regional será essencial para defender os direitos humanos dentro e fora da Venezuela

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Por Theodore Kahn*

BOGOTÁ — A Venezuela voltou ao centro das atenções da diplomacia global enquanto oficiais desciam em Nova York nesta semana para a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Poucos dias antes, uma missão de apuração da ONU denunciou a ditadura de Nicolás Maduro por repressão sem precedentes e crimes contra a humanidade na sequência da eleição de 28 de julho.

Muitos chefes de Estado latino-americanos denunciaram agressivamente o regime hegemônico de Caracas em seus discursos na Assembleia-Geral, enquanto outros adotaram uma abordagem muito mais conciliatória. Suas opiniões drasticamente divididas são apenas a mais recente evidência de que a crise política na Venezuela está prestes a se tornar um poderoso ponto de conflito no próximo ciclo de eleições da região, exacerbando a intensa polarização que tensiona os sistemas democráticos por todo o hemisfério.

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, discursa em um evento em Caracas,Venezuela  Foto: Francisco Batista/AFP

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Em seu discurso na Assembleia-Geral, Gabriel Boric do Chile renovou sua denúncia de fraude eleitoral inequívoca e violações dos direitos humanos na Venezuela, chamando o regime de “uma ditadura que está tentando roubar uma eleição, que persegue seus oponentes e é indiferente ao exílio não de milhares, mas de milhões de seus cidadãos.” E logo após um tribunal federal na Argentina ordenar a prisão de Maduro e de seu Ministro do Interior, Diosdado Cabello, por crimes contra a humanidade cometidos contra dissidentes, o presidente argentino Javier Milei caracterizou o governo de Maduro como uma “ditadura sangrenta”.

O Presidente da Guatemala, Bernardo Arévalo, rejeitou o esforço da Venezuela de “reprimir as aspirações por liberdades e justiça” expressas através de suas eleições, e o Luis Abinader da República Dominicana reafirmou seu chamado para que Maduro libere uma contagem completa dos votos. Falando na quarta-feira, Abinader adicionou que “sem a devida transparência que qualquer processo eleitoral requer e sem qualquer suporte documental, a crise só vai piorar.”

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O presidente do Chile, Gabriel Boric, discursa na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Pamela Smith/AP

No entanto, o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva não mencionou a Venezuela ou seu papel como mediador na crise atual em seu discurso, mas à margem do evento da ONU se encontrou com o Presidente Francês Emmanuel Macron para revisar a situação da Venezuela. Gustavo Petro da Colômbia pareceu elogiar o país em uma crítica à desigualdade global, dizendo, “esse 1% mais rico da humanidade, a poderosa oligarquia global, é quem permite ... bloqueios econômicos contra países rebeldes que não se encaixam em seu controle, como Cuba ou como a Venezuela”. No entanto, em uma entrevista à CNN, Petro instou a encontrar uma “solução política” para a crise em andamento, enquanto Maduro mira a posse formal em 10 de janeiro.

Embora as divisões sobre a Venezuela não sejam novas — o chavismo tem sido um ponto de controvérsia política desde seu surgimento nos anos 1990 — o impasse sobre a eleição de 28 de julho provavelmente fará o debate se tornar cada vez mais contencioso. E além da retórica, a crise política na Venezuela criará desafios políticos muito concretos para os líderes regionais.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma coletiva de imprensa, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Angela Weiss/AFP

Contenção de danos

A migração é o efeito imediato mais significativo da brutal onda de repressão de Maduro. O número de venezuelanos vivendo no exterior, já estimado em quase 8 milhões, provavelmente aumentará nos próximos meses à medida que mais pessoas fogem da perseguição. Governos por toda a América Latina e o Caribe estão ansiosos para evitar as implicações sociais, humanitárias e políticas de uma nova onda de migrantes venezuelanos — mas eles podem não ser capazes.

A crise da Venezuela também provavelmente fortalecerá grupos armados organizados à medida que Maduro procura transferir o ônus da repressão das forças armadas para atores não estatais como os coletivos (gangues pró-governo) e o Exército de Liberação Nacional (ELN), um grupo guerrilheiro colombiano com ligações de longa data ao chavismo.

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No restante da região, países que recebem venezuelanos enfrentarão crescentes riscos de segurança ligados à imigração, à medida que gangues se aproveitam das rotas de migrantes para entrar em novos mercados. Esses fatores apenas intensificarão a retórica anti-migração na política, assim como as propostas de mão dura para lidar com ela.

Mulher venezuelana pede a soltura do filho na frente do escritório do procurador-geral da Venezuela, em Caracas. Angel Ramirez foi preso durante os protestos contra a ditadura de Nicolas Maduro  Foto: Ariana Cubillos/AP

Enquanto isso, o isolamento internacional — e uma escalada de sanções — provavelmente levará Maduro a uma união mais estreita com a China, Rússia e Irã. Nos últimos meses, a Venezuela tomou medidas para reforçar os laços com esses governos para atenuar o impacto de uma possível reescalada das sanções dos EUA. Para os EUA e seus aliados, esse cenário significa não apenas o redirecionamento dos fluxos de petróleo para rivais geopolíticos, mas também o crescente influência militar e de inteligência chinesa e russa no Hemisfério Ocidental.

Essas considerações todas criam incentivos para os EUA, Brasil e Colômbia serem pragmáticos. Esses principais atores regionais visarão evitar um colapso econômico completo e conter a repressão da ditadura de Maduro, dois fatores que contribuiriam para um aumento na emigração. Isso ajuda a explicar por que o governo Biden adotou uma abordagem cautelosa em relação a novas sanções, assim como a estratégia de Lula e Petro em seus discursos antes da ONU. Brasília e Bogotá priorizarão manter relações com o governo Maduro com esperanças de garantir cooperação em migração e segurança futuramente.

Uma resposta regional coordenada

Divisões entre os países até agora dificultaram qualquer resposta regional à crise da Venezuela. No entanto, ainda há tempo para corrigir o curso. A Assembleia-Geral da ONU proporciona uma oportunidade para a região falar com uma só voz, ao mesmo tempo em que estabelece uma estratégia coerente e pragmática para lidar com os efeitos regionais do derramamento da crise.

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Isso poderia conter os piores instintos de Maduro, proteger a oposição e seus líderes e ajudar a mitigar a repressão, um motor chave da migração. Para fazer isso, os governos poderiam fazer uma declaração conjunta que estabelece a ilegitimidade da vitória de Maduro, documenta as numerosas irregularidades e violações da lei venezuelana e rejeita a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de encobrir a fraude eleitoral.

Independente de como a crise evolua, a cooperação regional será essencial para defender os direitos humanos dentro e fora da Venezuela, assim como responder aos desafios da migração atendendo tanto aos migrantes quanto às comunidades receptoras. Os governos têm uma oportunidade significativa de tomar medidas práticas para facilitar o compartilhamento de informações, a interoperabilidade dos sistemas para documentação de migrantes e a coordenação da aplicação da lei.

Nenhum ator externo pode provocar uma transição democrática na Venezuela. Mas a região ainda pode tomar medidas para defender a democracia — ainda que simbolicamente e com uma visão de longo prazo — enquanto também trabalha para mitigar os efeitos derramados tanto externos quanto internos.

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Opinião por Theodore Kahn*

*Kahn é diretor de Análise de Riscos Globais para a Região Andina na Control Risks

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