Por que o mundo está tão preocupado com as armas nucleares ‘táticas’ da Rússia?

A guerra na Ucrânia levou ao ressurgimento dos temores sobre o uso de armas nucleares

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Por Adam Taylor e William Neff
9 min de leitura


THE WASHINGTON POST - A Rússia está armada até os dentes com armas nucleares, que alguns analistas temem que ela considere usar para escalar o conflito se sentir que está perdendo. Ao mesmo tempo, os apoiadores ocidentais da Ucrânia também estão armados com armas nucleares, o que significa que, se o conflito for além do país, ele poderia colocar potências nucleares umas contra as outras.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse na semana passada que a Rússia deveria parar com sua “perigosa e irresponsável retórica nuclear” e alertou que “nunca poderia vencer uma guerra nuclear”.

Apenas recentemente a Rússia se esforçou para conter as preocupações: o porta-voz do Kremlin, Dimitri Peskov, disse à rede PBS na segunda-feira que “ninguém está pensando” em usar armas nucleares. Mas mesmo que as negociações de paz agitem o otimismo, a confiança na retórica russa permanece baixa, depois das repetidas alegações de Moscou de que não invadiria a Ucrânia.

Imagem do momento da explosão da bomba atômica em Hiroshima Foto: Reuters

Apesar dos ecos do passado da Guerra Fria, o cenário estratégico mudou. As equações de tempo de guerra sobre o risco de usar ações nucleares – que nunca são simples – foram complicadas por ogivas “táticas” que a Rússia armazenou. Essas armas nucleares menores, muito menos poderosas do que as que os EUA lançaram sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki durante a 2ª Guerra, são projetadas para serem usadas no campo de batalha.

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Seu tamanho menor, alguns especialistas temem, poderia quebrar o tabu nuclear. Acredita-se que a Rússia tenha mais de 1,5 mil delas.

Sarah Bidgood, diretora do programa Eurasia do James Martin Center for Nonproliferation Studies em Monterey (Califórnia), disse que é difícil estimar o nível de risco de que a Rússia use uma bomba nuclear tática na Ucrânia, mas que está claro que Moscou confia em suas armas nucleares, incluindo armas táticas, para dar flexibilidade no gerenciamento do risco de escalada.

“Isso significa que a Rússia poderia introduzir armas nucleares em um conflito quando sentisse que havia esgotado as opções convencionais e enfrentava uma ameaça existencial”, disse Bidgood. “É difícil dizer, porque não temos uma boa noção de quais são todas as linhas vermelhas de Putin aqui, ou o que ele considera uma ameaça existencial.”

O que é uma arma nuclear tática?

Ogivas “estratégicas” têm rendimentos enormes e seriam capazes de destruir uma cidade. Depois, há a ogiva “não estratégica” ou “tática”. Essas são menores, embora ainda capazes de infligir morte e destruição consideráveis.

Além de seu tamanho e rendimento, a principal diferença é como elas devem ser usadas. Uma arma estratégica é projetada para atacar com poder devastador como parte de uma grande estratégia durante a guerra. Esse tem sido o medo nuclear tradicional em Washington e Moscou – um cenário de apocalipse nuclear ao estilo do Doutor Fantástico.

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Mas as armas nucleares táticas são projetadas para serem usadas em um campo de batalha. Alguns tipos têm rendimento variável, o que permitiria que seu poder explosivo fosse calibrado para um ataque específico; outras, apelidadas de “bombas de nêutrons”, foram projetadas para espalhar radiação com apenas uma explosão mínima.

O que sabemos sobre o arsenal nuclear tático da Rússia?

Muitos países, incluindo os EUA e a União Soviética, investiram pesadamente em armas táticas durante a Guerra Fria. Tanto Washington quanto Moscou reduziram unilateralmente seus programas nucleares após a queda da União Soviética.

Um tratado de controle de armas, chamado New START, negociado pelo presidente Barack Obama e pelo então presidente da Rússia, Dimitri Medvedev, em 2010, limitou os dois países à implantação de 1.550 ogivas nucleares em mísseis balísticos e bombardeiros. No entanto, as armas táticas menores não são regidas por este acordo, nem por qualquer outro acordo internacional.

Um relatório divulgado no mês passado pela Federação de Cientistas Americanos descobriu que a Rússia tinha um estoque de aproximadamente 4.477 ogivas nucleares no total. Desse número, cerca de 1.588 eram ogivas estratégicas que haviam sido implantadas, enquanto 977 estavam armazenadas, mas prontas para uso.

Captura de vídeo divulgada pelo Ministério da Defesa da Rússia em 19 de fevereiro de 2022 mostra um míssil balístico intercontinental Yars sendo lançado durante um exercício de treinamento em um local indefinido na Rússia Foto: Russian Defence Ministry / AFP

A Rússia tinha cerca de 1.912 ogivas não estratégicas que, segundo ela, também estão em armazenamento central, embora a FAS observe que esses locais de armazenamento podem estar perto de bases com forças operacionais (outras 1.500 ogivas foram consideradas aposentadas, mas ainda “em grande parte intactas”).

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Os EUA, por sua vez, têm 1.644 armas nucleares estratégicas implantadas, bem como 100 armas táticas implantadas na Europa. Tem mais 1.984 ogivas armazenadas – das quais 130 são táticas.

Quão importante são as armas nucleares táticas para a Rússia?

No fim da década de 90, enfrentando problemas econômicos que deixaram seu Exército tradicional em frangalhos e o impasse militar humilhante com líderes separatistas na Chechênia, os líderes russos parecem ter se concentrado na tecnologia nuclear.

Em 1999, Putin, que era então presidente do Conselho de Segurança do Kremlin, disse que após uma reunião com o então presidente Boris Yeltsin, o líder russo havia endossado “um plano para a desenvolvimento e uso de armas nucleares não estratégicas”, segundo relatos da época.

Analistas ocidentais argumentam que, nos últimos anos, Putin criou o que ficou conhecido como doutrina de “escalar para desescalar”, embora os documentos russos não usem essa frase. Em um relatório divulgado no início de março, o Serviço de Pesquisa do Congresso descreveu essa suposta doutrina.

“As declarações russas, quando combinadas com exercícios militares que pareciam simular o uso de armas nucleares contra membros da Otan, levaram muitos a acreditar que a Rússia poderia ameaçar usar suas armas nucleares não estratégicas para coagir ou intimidar seus vizinhos”, afirmou o relatório do CRS.

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Adam Mount, diretor do Projeto de Postura de Defesa da Federação de Cientistas Americanos, disse que a fraqueza dos sistemas de armas convencionais da Rússia pode explicar a dependência potencial de ameaças nucleares.

“Em geral, se um país pode atingir seus objetivos sem armas nucleares, ele o fará”, disse Mount. “Armas nucleares são ferramentas dos fracos.”

Por que alguns especialistas estão preocupados com as armas nucleares na Ucrânia?

Nenhum país usou armas nucleares em uma guerra desde que os EUA lançaram duas bombas nucleares no Japão em 1945. No entanto, autoridades russas fizeram comentários repetidos sobre armas nucleares.

Putin anunciou em 27 de fevereiro, poucos dias depois de invadir a Ucrânia, que havia colocado as forças de dissuasão nuclear da Rússia em alerta.

A Rússia também mostrou novas tecnologias de mísseis durante a invasão da Ucrânia, incluindo um míssil balístico lançado do ar chamado Kinzhal, que pode viajar em velocidades hipersônicas, bem como um míssil de cruzeiro de longo alcance chamado Kalibr.

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Ambos os mísseis são considerados de capacidade dupla, disse Mount, o que significa que podem transportar uma arma convencional ou uma ogiva nuclear – um problema significativo para os militares ocidentais, pois eles podem não saber que é um ataque nuclear até que um exploda. Mas até agora não há sinal de que a Rússia tenha retirado suas ogivas táticas do armazenamento, acrescentou Mount.

Bidgood disse que classificou o risco de armas não estratégicas na Ucrânia como baixo, mas crescente.

“Putin parece se sentir confiante de que pode usar ameaças e sinais velados para escalar e diminuir a escala para atender às suas necessidades”, disse Bidgood. “Mas esse é um jogo muito perigoso e que pode facilmente levar a falhas de comunicação e interpretações erradas.”

Mount disse que a ansiedade pública sobre o uso de armas nucleares na Ucrânia “superou em muito o risco real”, pelo menos até agora. “O risco aumenta à medida que Putin se torna mais desesperado, mas o fato é que o uso nuclear não o ajudaria a vencer a guerra ou faria Washington abandonar Kiev”, disse Mount.

Resposta dos EUA

Não está claro como os EUA responderiam se a Rússia detonasse uma arma nuclear tática. A Ucrânia não é um membro da Otan e não está obrigada por um tratado a protegê-la. Mas as autoridades dos EUA falaram de quão seriamente eles levariam tal exemplo.

Em 2017, o então general da Força Aérea John E. Hyten se opôs à ideia de que as armas nucleares táticas eram realmente algo diferente de uma arma nuclear estratégica. Hyten, que na época supervisionava as armas nucleares dos EUA como chefe do Comando Estratégico dos EUA, descreveu como os EUA poderiam responder se outro país as usasse.

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“Não é um efeito tático, e se alguém empregar o que é uma arma nuclear não estratégica ou tática, os EUA responderão estrategicamente, não taticamente, porque aí então cruzou uma linha, uma linha que não é cruzada desde 1945″, disse Hyten.

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