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Posição de Putin sobre tratado nuclear sinaliza fim do controle formal de armas; leia análise

As inspeções mútuas estão suspensas há anos por causa da pandemia. Mas o New Start, o último acordo nuclear entre a Rússia e os EUA, está agonizando

Por David E. Sanger
Atualização:

Quando o presidente Vladimir Putin anunciou ao fim do discurso de quase duas horas na terça-feira que iria interromper a participação da Rússia no tratado New Start – o último acordo de controle de armas existente entre as duas maiores potências nucleares –, isso foi mais uma indicação de que a era do controle formal de armas pode estar chegando ao fim.

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Mesmo antes de Putin recusar a realização das inspeções exigidas pelo tratado como “um absurdo”, o acordo já enfrentava sérios problemas. O Departamento de Estado dos Estados Unidos anunciou no mês passado que os russos estavam fora de conformidade com as obrigações do tratado.

Putin esclareceu que não estava deixando o tratado, que expira em fevereiro de 2026. Ele também não ameaçou usar mais armas nucleares estratégicas – do tipo que pode ser disparada entre continentes - do que limite estipulado pelo tratado, que mantém ambos os lados com 1.550 armas nucleares.

Presidente Russo Vladimir Putin faz discurso para a nação e promete continuar com a guerra na Ucrânia Foto: Dmitry Astakhov/Sputnik/AFP

Contudo, deixou claro que os EUA não inspecionariam as instalações nucleares russas, um elemento central para verificar o cumprimento do tratado. E, de modo geral, ele parecia um líder que estava cansado de lidar com o controle de armas em um momento de confronto crescente com os EUA e a OTAN.

Caso esse posicionamento seja mantido, quem estiver sentado no Salão Oval quando o tratado expirar, daqui a pouco mais de mil dias, talvez tenha que enfrentar um novo mundo que se parecerá, à primeira vista, semelhante ao de 50 anos atrás, quando as corridas armamentistas estavam a todo vapor e os países podiam utilizar quantas armas nucleares desejassem.

Putin disse ter sido obrigado a tomar essa decisão. “Eles querem nos impor ‘derrota estratégica’”, afirmou, usando uma expressão que as autoridades americanas adotaram para descrever o resultado desejado para a Rússia na guerra contra a Ucrânia, “e atacar nossas instalações nucleares”. Ele disse que os ucranianos já usaram drones para atacar bases aéreas estratégicas na Rússia, onde a força aérea do país mantém as aeronaves que podem carregar armas nucleares.

Ele disse que não permitiria a verificação das instalações pelos inspetores, porque eles poderiam repassar suas descobertas aos ucranianos para novos ataques. “Este é um teatro do absurdo”, afirmou. “Sabemos que o ocidente está diretamente envolvido nas tentativas do regime de Kiev de atacar nossas bases.”

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Nada disso altera muito o status quo. As inspeções nucleares foram interrompidas durante a pandemia de covid, quando os inspetores de ambos os lados não podiam entrar nem na Rússia, nem nos EUA. Mas, no ano passado, à medida que as restrições de viagem eram flexibilizadas, os russos encontraram razões para negar as inspeções – e acusaram, como Putin fez outra vez na terça-feira, os EUA de também não estarem obedecendo seus requisitos de inspeção.

Os EUA têm alguma ideia do arsenal russo, principalmente por conta dos satélites que acompanham as movimentações nucleares do país. Entretanto, há uma preocupação maior. A prorrogação de cinco anos do New START com a qual Biden e Putin concordaram no primeiro mês de governo do presidente americano é a única permitida pelo acordo, que foi negociado durante a presidência de Obama. Isso significa que um tratado completamente novo teria de ser redigido. E enquanto as autoridades americanas insistem em querer negociar um novo tratado, é cada vez mais difícil imaginar que isso aconteça nos próximos três anos.

As razões são inúmeras. Em primeiro lugar, não existe praticamente nenhuma comunicação entre os dois países. As “conversas de estabilidade estratégica” com as quais Biden e Putin concordaram em junho de 2021, durante a única reunião presencial deles como presidentes, foram canceladas após a invasão da Ucrânia.

Em segundo lugar, a confiança entre os dois países é quase inexistente. Putin e Biden não conversam diretamente há mais de um ano. Nesse intervalo, Biden descreveu o líder russo como um criminoso de guerra, e Putin chamou o presidente americano de agressor na Ucrânia. Em particular, as autoridades americanas às vezes reconhecem que, mesmo se negociassem um tratado, seria praticamente impossível imaginar o Senado aprová-lo sob essas condições.

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Em terceiro lugar, o tratado atual não abrange as armas nucleares com as quais o mundo mais se preocupa em conflitos como os da Ucrânia – as “armas nucleares de guerra”, ou armas nucleares de uso tático, que Putin ameaçou algumas vezes usar contra as forças ucranianas. A Rússia tem cerca de duas mil delas, já os EUA, algumas centenas.

Por último, outro tratado apenas entre Moscou e Washington já não faz mais sentido para a maioria dos especialistas em armas nucleares. O Pentágono estima que a China, com a expansão veloz de seu arsenal, poderá empregar 1.500 armas nos próximos dez anos, equiparando-se aos arsenais americano e russo. Portanto, um tratado de controle de armas que deixasse de fora uma das três grandes potências seria quase inútil. E até agora, a China não demonstrou qualquer interesse em participar das negociações – se é que elas existiram.

De qualquer modo, o secretário de Estado Antony J. Blinken disse na terça-feira, depois do discurso de Putin, que estaria disposto a negociar um novo tratado que fosse “claramente do interesse da segurança do nosso país” e, também, “do interesse da segurança da Rússia”.

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Segundo ele, a declaração de Putin era “profundamente infeliz e irresponsável”. Mas Blinken sugeriu que os EUA não mudariam sua obediência ao tratado, independentemente do que a Rússia fizesse.

“Acho que é importante continuarmos a agir de forma responsável nesta área”, afirmou. “Isso também é algo que o resto do mundo espera de nós.”

* David E. Sanger é correspondente de política e segurança nacional. Em seus 38 anos de carreira no Times, ele participou de três equipes que ganharam prêmios Pulitzer, sendo o mais recente em 2017 por reportagem internacional. Seu último livro é “A Arma Perfeita: guerra, sabotagem e medo na era da ciberguerra”. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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