Putin está isolado há dois anos e só ouve aliados radicais, diz biógrafo do líder russo

Rússia está ficando cada vez mais parecida com seu presidente; leia o artigo de Mikhail Zygar

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Por Mikhail Zygar
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8 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Graças à decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia, a Rússia está agora mais isolada do que jamais esteve. A economia está sob sanções, e empresas internacionais estão se retirando. Os meios de comunicação noticiosos foram restringidos ainda mais; os que permanecem jorram paranoia, nacionalismo e falácias. Os russos se comunicarão cada vez menos com o exterior. E em meio a tudo isso, temo, a Rússia fica cada vez mais parecida com seu presidente.

Tenho conversado com empresários de alto nível e fontes no Kremlin há anos. Em 2016, publiquei um livro, All the Kremlin’s Men (Todos os homens do Kremlin), a respeito o alto escalão de Putin. Desde então, estive coletando material para uma possível sequência.

Ainda que as movimentações em torno do presidente sejam opacas — Putin, um ex-agente da KGB, sempre foi reservado e de mentalidade conspiratória — minhas fontes, que falam comigo sob condição de anonimato, com frequência estiveram certas.

O presidente russo, Vladimir Putin, durante encontro com Alexander Lukashenko, presidente de Belarus  Foto: Sputnik/Sergey Guneev/Kremlin via REUTERS

O que escutei a respeito do comportamento do presidente ao longo dos dois últimos anos é alarmante. Seu isolamento e inacessibilidade, sua profunda crença de que o domínio russo sobre a Ucrânia deve ser restabelecido e sua decisão de cercar a si mesmo de ideólogos e aduladores colaboraram para levar a Europa ao seu mais perigoso momento desde a 2.ª Guerra.

O Rasputin do novo czar

Putin passou a primavera e o verão de 2020 em quarentena em sua residência em Valdai, localizada aproximadamente na metade do caminho entre Moscou e São Petersburgo. De acordo com fontes do governo, acompanhado de Yuri Kovalchuk.

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Kovalchuk, que é o maior acionista do Rossiya Bank e controla vários meios de comunicação aprovados pelo Estado, é amigo próximo de Putin e conselheiro de sua confiança desde os anos 90. Em 2020, segundo as minhas fontes, Kovalchuk havia se estabelecido como o segundo homem, de facto, na escala do poder na Rússia: a pessoa mais influente no séquito do presidente.

Kovalchuk possui doutorado em física e já foi funcionário de um instituto chefiado pelo prêmio Nobel Zhores Alferov. Mas ele não é apenas um homem de ciência. É também ideólogo, subscrevendo a uma visão de mundo que combina misticismo cristão-ortodoxo, teorias conspiratórias anti-EUA e hedonismo. Esta parece ser também a visão de mundo de Putin. Desde o verão de 2020, Putin e Kovalchuk têm sido quase inseparáveis — e juntos, ambos têm feito planos para restaurar a grandeza da Rússia.

O retorno da Mãe Rússia

De acordo com pessoas com conhecimento a respeito do teor de conversas de Putin com assessores nos últimos dois anos, o presidente perdeu totalmente o interesse no presente: A economia, temas sociais, a pandemia de coronavírus, nada disso o incomoda. Em vez disso, Putin e Kovalchuk estão obcecados com o passado. Um diplomata francês me disse que o presidente da França, Emmanuel Macron, ficou estarrecido quando Putin lhe proferiu uma extensa palestra sobre história durante uma das conversas que tiveram no mês passado. Macron não deveria se surpreender.

Dentro de sua própria mente, Putin se vê num momento histórico único, no qual ele é capaz de finalmente reparar anos de humilhação. Na década de 90, quando Putin e Kovalchuk se conheceram, ambos lutavam para tomar pé em seguida à queda da União Soviética, assim como seu país. O Ocidente, acreditam eles, tirou vantagem do enfraquecimento da Rússia para ampliar a Otan para o mais próximo possível das fronteiras do país. Na visão de Putin, hoje a situação é oposta: é o Ocidente que está enfraquecido. O único líder ocidental que Putin respeitava era a ex-chanceler alemã Angela Merkel. Agora que ela saiu do jogo, é hora da Rússia se vingar das humilhações dos anos 90.

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Um autocrata com medo da covid

Parece que não há ninguém em torno de Putin para aconselhá-lo a tomar outro caminho. Putin não se encontra mais com os amigos para tomar drinques e fazer churrasco, segundo pessoas que o conhecem. Nos anos recentes, e especialmente desde o início da pandemia, ele cortou a maioria do contato com conselheiros e amigos. Ainda que já tenha agido como imperador que brinca com as controvérsias entre seus súditos, escutando-os denunciar uns aos outros e colocando-os uns contra os outros, agora ele está isolado e distante, até mesmo de seu séquito mais antigo.

Sua guarda impôs um estrito protocolo: Ninguém pode ver o presidente se não tiver passado pelo menos uma semana em quarentena — nem mesmo Igor Sechin, que já foi secretário pessoal de Putin e agora dirige a petroleira estatal Rosneft. Há relatos de que Sechin fica em quarentena entre duas e três semanas todos os meses, em nome das ocasionais reuniões com o presidente.

Em “Todos os homens do Kremlin” descrevi o fenômeno do “coletivo Putin” — a maneira que seu séquito sempre tenta avidamente antecipar o que agradaria o presidente. Os integrantes desse círculo diziam a Putin exatamente o que ele queria escutar. O “coletivo Putin” ainda existe: O mundo inteiro o viu na véspera da invasão, quando o presidente convocou seus altos comandantes, um a um, e perguntou a eles sua opinião sobre a guerra vindoura. Todos entenderam sua tarefa e, de maneira submissa, tentaram descrever os pensamentos do presidente com suas próprias palavras.

Um baile coreografado

Essa reunião-ritual, que foi transmitida por todos os canais de TV da Rússia, deveria manchar de sangue todas as mais graduadas autoridades do país. Mas também mostrou que Putin está completamente farto da sua velha-guarda: seu desprezo ficou claro. Putin pareceu saborear o momento quando humilhou publicamente Sergei Narishkin, o chefe do Serviço de Inteligência Exterior, que começou a murmurar e tentou rapidamente se corrigir, concordando com tudo o que Putin estava dizendo. Esses homens não passam de puxa-sacos, parecia dizer o presidente.

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Conforme noticiei durante anos, alguns membros do séquito de Putin trabalharam por muito tempo tentando convencê-lo de que ele é a única pessoa capaz de salvar a Rússia, que qualquer outro possível líder falharia com o país. O presidente ouve essa mensagem desde 2003, quando considerou deixar o poder e ouviu de seus assessores — muitos dos quais também ex-agentes da KGB — que deveria ficar.

Alguns anos depois, Putin e seu séquito discutiam a “Operação Sucessor”, e Dmitri Medvedev foi ungido à presidência. Quatro anos depois Putin retornou para substituí-lo. Agora, Putin veio realmente e sinceramente a acreditar que é a única pessoa capaz de salvar a Rússia. Na verdade, ele acredita nisso com tanta força que chega a pensar que as pessoas em seu entorno podem frustrar seus planos. Ele também não pode confiar nelas.

Moradores de Kiev passam por carro queimado; milhões de pessoas fogem do conflito Foto: Roman Pilipey/Efe

Uma Rússia isolada

E agora, aqui estamos. Sozinha, sob sanções, isolada do mundo, a Rússia parece estar sendo remodelada à imagem de seu presidente. O já restrito alto escalão de Putin apenas se fecha ainda mais. Conforme as mortes aumentam na Ucrânia, o presidente parece fincar o pé; e afirma que as sanções sobre seu país são uma “declaração de guerra”.

Ainda assim, ao mesmo tempo, Putin parece acreditar que o isolamento completo fará com que os elementos mais duvidosos da Rússia deixem o país: Durante as duas últimas semanas, a intelligentsia em protesto — executivos, atores, artistas, jornalistas — tem se apressado para fugir; alguns abandonaram o que tinham ao sair. Desconfio que, do ponto de vista de Putin e Kovalchuk, isso apenas fortalecerá a Rússia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Mikhail Zygar (@zygaro) é ex-editor-chefe do canal televisivo de notícias independente Dozhd e autor de “All the Kremlin’s Men: Inside the Court of Vladimir Putin” (Todos os homens do Kremlin: por dentro da corte de Vladimir Putin).