Rei Charles III abraça a diversidade religiosa para dar face inclusiva à monarquia britânica

Acrescentando uma dança de Chanucá e doces do Diwali ao tradicional discurso natalino, o rei Charles III adota publicamente uma monarquia mais inclusiva em seus primeiros meses no trono

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Por Mark Landler
Atualização:

LONDRES — O rei Charles III marcou seu centésimo dia no trono britânico, em 16 de dezembro, visitando um centro comunitário judaico, onde ele dançou a “hora” em uma festa de Chanucá. Foi um fim alentador de um dia que havia começado com manchetes nefastas a respeito do venenoso relacionamento entre seus filhos, William e Harry.

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E revelou muito a respeito seus primeiros dias de reinado: uma estreia pragmática que mostrava como Charles seria um monarca muito diferente de sua mãe, a rainha Elizabeth II, mesmo que ainda ofuscado pela mesma discórdia familiar que assombrou-a até sua morte, em setembro, aos 96 anos.

A continuidade, assim como as diferenças, estiveram evidentes vividamente no domingo, quando Charles, de 74 anos, assumiu uma das tarefas mais emblemáticas da rainha: a Mensagem Real de Natal à nação. No coro da Capela de São Jorge, no Castelo de Windsor, ele recordou sua mãe e confortou seu povo após um ano de perda e turbulências.

Rei Charles encontra súditos para agradecer suporte após a morte da rainha Elizabeth II Foto: Andrew Milligan/Pool via REUTERS

“Ainda que o Natal, evidentemente, seja uma celebração cristã”, disse o rei, “o poder da luz superando a escuridão é celebrado através dos limites da fé e da crença”. Ele agradeceu “igrejas, sinagogas, mesquitas, templos e gurdwaras” — onde os sikhs rezam — por seus bons trabalhos “neste tempo de grande ansiedade e dificuldade”.

O aceno do rei para outras fés religiosas reflete um antigo interesse manifestado durante suas décadas como príncipe-herdeiro. Foi esse mesmo impulso que o levou a se juntar, alegremente, ainda que com certa rigidez, à dança folclórica judaica — em que uma de suas parceiras foi Eva Schloss, de 93 anos, sobrevivente do Holocausto e meia-irmã de Anne Frank.

Isso também contribuiu para sua decisão de oferecer uma bandeja de doces típicos do festival hindu Diwali para Rishi Sunak em outubro, quando o primeiro-ministro britânico foi ao Palácio de Buckingham receber a bênção do rei para exercer sua função.

Rei Charles III recebe o primeiro-ministro Rishi Sunak no Palácio de Buckingham Foto: Aaron Chown/Pool via REUTERS

As palavras de Charles foram um contraste marcante em relação às mensagens de Natal da rainha, que se fundavam em sua fé cristã. E o rei tem ido além das palavras: no dia seguinte à morte de sua mãe, Charles saiu do carro para cumprimentar súditos enlutados reunidos em torno dos portões do palácio.

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“Ele tem feito mais gestos de abertura do que a rainha”, afirmou Vernon Bogdanor, professor de ciência política na King’s College London considerado autoridade a respeito da monarquia constitucional. “Ela não permitia que as pessoas a tocassem.”

O estilo mais inclusivo do novo rei talvez seja a característica mais distintiva de seu recente reinado, afirmou o professor Bogdanor, o que, argumentou ele, equipará o monarca para “representar todo o país de uma maneira que nenhum político é capaz durante um período de turbulência e instabilidade política”.

E, mesmo assim, o discurso de Charles foi também uma afirmação de continuidade, algo que os especialistas em realeza britânica dizem ter sido sua maior prioridade desde que ascendeu ao trono; refletindo um reconhecimento de que ele substitui uma figura amada, cujo reinado de sete décadas a tornou a única soberana que a maioria dos britânicos conheceu na vida.

Charles dificilmente conquistará o afeto de que Elizabeth desfrutou. Para alguns, ele não passará de uma figura de transição entre sua mãe e seu filho William, o príncipe-herdeiro. Afinal, levou anos para Charles conseguir se desvincular de sua constrangedora juventude e da calamidade de seu divórcio da princesa de Gales, Diana, e recuperar a confiança do público.

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Por ter assumido a função com relativamente pouca queixa do público, afirmam especialistas em realeza britânica, Charles já pode ser considerado bem-sucedido.

“O maior desafio que ele tinha para superar era a transição”, afirmou Peter Hunt, ex-setorista de família real da BBC. “O que ele precisava evitar era pessoas dizendo, ‘Por que ele? Por que ainda precisamos de um monarca?’. Ele conseguiu isso.”

O reinado de Charles não tem prescindido de tropeços. O palácio encarou acusações de racismo institucional no mês passado, quando uma dama de honra da rainha perguntou, repetidamente, para uma mulher negra britânica, “De onde você é?”, durante uma recepção, parecendo não aceitar a afirmação da mulher dizendo que é britânica.

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O palácio condenou imediatamente a cortesã, Susan Hussey, demitiu-a do emprego e intermediou um encontro com a convidada, Ngozi Fulani, durante o qual Hussey se desculpou. Foi um sinal de que Charles, incentivado por William, está determinado em mostrar que não tolerará nenhuma percepção de comportamento racista dentro da casa real. William expressou uma condenação ainda mais dura que a do palácio.

“Tem havido claramente uma sensibilidade maior na casa real a respeito do tema racial”, afirmou o historiador Ed Owens, que estuda a monarquia. “Eles querem dar um passo adiante em relação a este assunto.”

Documentário de Harry

O rei tem sido menos comunicativo sobre as recentes acusações ventiladas por seu filho caçula, Harry, que alegou em um documentário recente do Netflix que seu pai mentiu e seu irmão gritou com ele durante uma reunião com a rainha para negociar a retirada de Harry e sua mulher americana, Meghan, das funções da realeza.

Em vez de contestar as acusações, o palácio deu a conhecer que Harry será convidado para a coroação de seu pai, em maio. Especialistas em família real britânica afirmaram que isso mostrou a determinação de Charles em agir como uma força curativa. Mas o documentário reforçou que a rixa entre os irmãos é profunda, persistente e, por agora, irreconciliável.

O palácio, afirmou Owens, ainda tem trabalho adiante. Sua imagem foi manchada com a revelação de que Jeremy Clarkson — comunicador que foi duramente criticado por escrever o que críticos qualificaram como uma coluna de jornal misógina a respeito de Meghan — compareceu a um almoço natalino organizado pela rainha-consorte, Camilla.

“Eles precisam se afastar dessas figuras”, afirmou Owens, referindo-se a Clarkson e Hussey. “Eles estão marcando gols contra”, afirmou ele.

Algumas associações são mais difíceis de controlar. Em novembro, o rei foi anfitrião de um banquete de Estado em homenagem ao presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, um dos países da Commonwealth, que na semana seguinte foi submetido a uma votação de impeachment sob acusações de lavagem de dinheiro.

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De muitas maneiras, o estilo do rei mudou pouco em relação ao período como príncipe de Gales. Mas nos bastidores ele foi forçado a abandonar seu ativismo em relação a temas como mudanças climáticas, que certa vez levaram um ex-assessor, Mark Bolland, a descrevê-lo como um “dissidente trabalhando contra o consenso político predominante”.

Charles reconheceu que sua nova função requereria dele que se afastasse de causas políticas. Esse novo status lhe foi enfatizado pouco após a morte da rainha, quando a então primeira-ministra, Liz Truss, aconselhou-o a não comparecer à cúpula climática das Nações Unidas em Sharm el Sheikh, no Egito.

Fontes ligadas ao palácio afirmaram que o rei ficou frustrado, apesar de atender ao conselho. Em vez de viajar, ele organizou uma recepção na véspera da conferência, convidando Sunak; John Kerry, enviado do presidente Joe Biden para o clima; e a designer de moda Stella McCartney, que tem promovido manufatura sustentável.

Especialistas afirmam que o episódio pode ter ajudado Charles, dissipando suspeitas a respeito do papel que ele desempenharia como rei.

“Ele jurou servir como um monarca constitucional”, afirmou Hunt. “Até aqui, suas ações corresponderam a essas palavras.”

Charles passou o bastão de seu ativismo ambiental para William, que viajou para Boston no mês passado com sua mulher, Catherine, para apresentar premiações concedidas pelo Earthshot Prize, uma organização financiada pelo príncipe-herdeiro para ajudar empreendedores a desenvolver soluções para as mudanças climáticas e outras questões ambientais.

Mas até agora William tem permanecido afastado de outras entidades de caridade de seu pai, incluindo a Prince’s Foundation. O que pode ser sensato: a polícia investigou a fundação educacional após relatos de que Charles ofereceu título de cavalheiro para um ricaço saudita em troca de uma doação. Um porta-voz de Charles afirmou que ele não tinha conhecimento de que se tratasse de um toma-lá-dá-cá.

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O próximo grande teste para o rei será sua coroação, em 6 de maio. O palácio sinalizou que planeja encurtar a duração tradicional da cerimônia, reduzir a lista de convidados e dispensar alguns dos rituais mais antiquados — em respeito à crise no custo de vida que aflige milhões de britânicos.

Ainda não está claro, contudo, como Charles integrará líderes de outras fés religiosas a um ritual profundamente cristão.

Desafios

Poucos dias após a morte da rainha, Charles reuniu mais de 30 líderes religiosos de diferentes fés no palácio. O rei lhes disse que, mesmo enquanto “cristão anglicano convicto”, considera seu dever “proteger a diversidade do nosso país, incluindo na proteção do espaço para a própria fé”.

Charles tem adiante outras dores de cabeça, incluindo um livro de memórias de Harry com publicação prevista para o próximo mês. Fontes ligadas ao palácio temem que a obra estragará mais sua conturbada relação com o pai do que o documentário “Harry & Meghan”, do Netflix. Essa produção colocou foco mais nas divergências de Harry com William. Otimistas apontam que Charles saiu praticamente ileso da temporada mais recente de “The Crown”, apesar desse trecho da série ter tratado de sua separação de Diana.

O rei, não surpreendentemente, ganhou impulso nas pesquisas após assumir o trono. Desde então, sua popularidade caiu um pouco: ele é considerado positivamente por 63% dos entrevistados e negativamente por 28%, de acordo com uma sondagem da firma de pesquisa de mercado YouGov. Esses números o colocam atrás de William e Catherine.

Ainda assim, apesar de seu passado de mágoas e das idas e vindas em sua reputação pública, o rei Charles passa claramente por uma lua de mel.

Em um editorial que trucidou Harry e Meghan na semana passada, o jornal The Sunday Times afirmou a respeito dos primeiros 100 dias do rei: “Ele se provou mais ágil, sensível e popular do que davam conta as previsões pessimistas da época em que foi príncipe de Gales”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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