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‘Será difícil ver a inflação argentina com um dígito, mesmo que se faça tudo certo’, diz economista

Para Juan Manuel Telechea, além da crise política, meta ambiciosa de Milei de reduzir inflação para um dígito nos próximos meses encontra resistência em um conceito emprestado da física: a inércia

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Por Carolina Marins
Atualização:
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comJuan Manuel TelecheaEconomista e diretor do Instituto de Trabalho e Economia da Fundação German Abdala

Javier Milei acabou de completar dois meses de governo na Argentina acumulando derrotas no Congresso, um decreto de urgência que pode ser bloqueado na Justiça, manifestações com repressão policial e, mais recentemente, uma guerra aberta com governadores de sua base de apoio. Nesta quarta-feira, 14, porém, Milei teve um respiro com o primeiro dado de inflação de seu governo, que mostrou uma desaceleração na comparação com dezembro.

O economista Juan Manuel Telechea, autor do livro “¡Inflación! ¿Por qué Argentina no se la puede sacar de encima?[Inflação! Por que a Argentina não consegue se livrar disso?] explica em entrevista ao Estadão que o número é uma vitória para o governo, que se mantém firme na meta de déficit zero. No entanto, a promessa de baixar a inflação para um dígito já nos próximos meses - Luis Caputo fala em depois de abril - é fora da realidade.

“Quando se tem uma inflação elevada por muito tempo, digamos vários anos, isso gera mudanças no comportamento das pessoas e das empresas”, afirma. “Para mim, este conceito é o calcanhar de Aquiles deste governo”. O economista também avalia que o governo tem um prazo curto, talvez até maio, para começar a entregar resultados econômicos que reflitam em melhora no bolso do argentino, ou verá o fim da paciência que pede.

Confira trechos da entrevista:

Mulher gesticula antes de pagar por suas compras em um supermercado de Buenos Aires Foto: Agustin Marcarian/Reuters

O que os primeiros dados de inflação do governo Milei nos dizem de seus dois primeiros meses em termos econômicos?

É um dado positivo. Há duas questões importantes a destacar, para mim as causas fundamentais dessa desaceleração: por um lado o fato de depois de aplicar uma forte desvalorização em meados de dezembro, o governo praticamente congelou um tipo de câmbio. Na Argentina já se é bastante conhecido que a inflação se move em consonância com o que acontece com o valor do dólar, então se você desvaloriza de forma drástica e depois mantém fixo o tipo de câmbio, você tem um fato que com certeza está explicando essa desaceleração. Em segundo lugar, o menor aumento de preços se deve a forte queda que estamos vendo tanto do consumo quanto da atividade econômica, e o próprio Milei diz ser algo positivo, a queda da demanda vai disciplinar a inflação.

A questão é que são dois fatores que não são sustentáveis no tempo. Não se pode baratear o câmbio de maneira sustentável por muitos meses sem que isso leve a problemas no mercado cambiário. Por outro lado, o salário das pessoas e a queda no consumo também vai encontrar um teto em algum momento.

Ou seja, é uma vitória conseguida apostando em uma recessão econômica?

Claro. Quando se aplica uma desvalorização tão grande, os efeitos são sempre os mesmos, e o governo sabia disso. A desvalorização faz com que rapidamente se impulsionem os preços, isso faz com que o poder de compra de toda a população se reduza porque o salário não sobe tão rápido quanto a inflação, e isso provoca uma recessão econômica. Essa é a realidade que estamos hoje. Na outra ponta o governo espera que, com o déficit fiscal, a inflação siga baixando e a atividade comece a se recuperar em algum momento quando os salários se atualizem com a inflação.

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E como esse plano econômico é impactado pela recente crise política desencadeada pelo próprio governo que decidiu declarar guerra a quem votou contra seu projeto de Lei Ônibus?

Temos que separar em dois planos. Por um lado o programa econômico, em que o principal elemento é o ajuste fiscal e no qual o governo já disse que, independentemente de não sair todas as medidas, ainda assim conseguiria manter a meta fiscal, que é de reduzir em mais ou menos 5 pontos do PIB para alcançar um equilíbrio financeiro. Então, segundo o que diz o governo, e os números mostram, que por mais que se tenha criado essa crise política e que as leis econômicas não tenham avançado, isso não compromete o programa econômico.

Depois, o que sim está tudo paralisado e precisamos ver o que vão fazer é com o plano, digamos, mais de reformas microeconômicas, justamente todas as regulações dos mercados, o tema trabalhista, a arrecadação de impostos, tudo isso, está parado precisamente porque o governo não teve os votos e agora temos que esperar. Em princípio se especula que ele pode começar a colocar sues projetos de lei de maneira individual e votá-los individualmente, mas a verdade é que hoje não há informações certeiras sobre isso.

Javier Milei após encontro com o papa Francisco no Vaticano em 12 de fevereiro Foto: Alessandra Tarantino/AP

Com o cenário atual, é possível que haja uma nova desvalorização da moeda e vejamos esse cenário todo novamente?

Eu acho possível. Há poucos dias o ministro da Economia [Luis] Caputo saiu para esclarecer que isso não ia acontecer. No geral quando se tem que sair a esclarecer isso é porque evidentemente a possibilidade existe. E isso tem muito a ver com o que disse antes. Quando se tem uma inflação tão alta, indo a uma velocidade de 20% e que vai seguir em nível elevados, mesmo que decrescentes, nos próximos meses, e se tem um câmbio que aumenta em 2%, ou seja, muito debaixo da inflação, o que estamos vendo é que todos os dias o valor do dólar está ficando mais barato, e se seguir nesta dinâmica, é muito provável que dentro de um mês ou dois no mais tardar a moeda vai ter o mesmo valor que teve antes da desvalorização. Isso significaria que a desvalorização atual já não teria nenhum efeito.

O problema que se tem quando o dólar barateia muito, isso faz com que, por um lado, os exportadores não liquidem, não vendem seus dólares, e aumentem as importações. Tudo isso leva a aumentar a pressão no mercado cambiário e é aí que poderemos ver uma nova desvalorização.

Em seu discurso de posse Milei prometeu uma política de choque para mudar a economia argentina. Nestes dois meses, com as derrotas que vem sofrendo, é possível dizer que houve de fato um choque?

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A política de choque está acontecendo. Dentro da política econômica, a desvalorização e o aumento de 120% no valor do dólar foi um política de choque. O que estamos vendo nos primeiros números do ajuste fiscal, que ainda não há tanto dado porque acabou de assumir o governo, mas temos algum, o ajuste é bastante forte. Se tomarmos como válida a meta do governo de realizar um ajuste de cinco pontos do valor do PIB para um ano, isso sem dúvidas é uma política de choque, especialmente em comparação com a Argentina e a nível mundial. Não há praticamente casos onde tenham havido ajustes tão fortes em um ano.

Tanto o aumento do dólar quanto o ajuste fiscal que está propondo, somados a todas as reformas que já tratou de entregar, tanto a Lei Ônibus quanto o DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), tentam mudar de um dia para o outro um monte de questões vinculadas com as regulações e as leis da economia argentina. O tema agora é se isso vai passar, se a Justiça não freia o DNU e se conseguem avançar pelo Congresso as leis que foram rejeitadas.

Em seu livro você argumenta que a inércia, se apropriando da teoria da física, é uma força que explica a dificuldade de se frear a inflação argentina nos últimos anos. Pode explicar o conceito?

Para mim este conceito é o que pode ser o calcanhar de Aquiles deste governo. Recordemos que Milei tem uma postura muito dogmática sobre as causas da inflação. Para ele, fundamentalmente, se explica pela quantidade de dinheiro que está circulando na economia. A partir desse diagnóstico, se reduzimos a quantidade de dinheiro, como vem fazendo o governo desde o dia que assumiu, deveria haver uma baixa da inflação.

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Porém, para mim parece faltar uma questão importante nisso, que é a inércia. E o que isso significa? Basicamente que quando se tem uma inflação elevada por muito tempo, digamos vários anos, isso gera mudanças no comportamento das pessoas e das empresas. Uma pessoa na Argentina não economiza da mesma forma que uma pessoa na Alemanha, uma empresa na Argentina não coloca preços observando as mesmas variáveis que uma empresa nos EUA e no Brasil. Isso justamente porque as pessoas vão se adaptando ao entorno.

Pessoas aguardam em uma fila para receber sopa em uma cozinha comunitária em Buenos Aires em 13 de fevereiro Foto: Martin Cossarini/Reuters

Quando se tem um entorno de inflação elevada por tanto tempo, se provoca duas grandes mudanças de comportamento: por um lado as pessoas se apoiam mais no dólar como moeda de poupança, porque as desvalorizações recorrentes reduzem a poupança na sua moeda, então mais gente se volta para a compra de dólares para assim defender suas poupanças. Nessa questão se agrega o problema da falta de dólares, que justamente faz com que as pessoas queiram comprar ainda mais dólares em um contexto em que não há. Já pelo lado das empresas o que se vê é que as elas observam o dólar o tempo todo, e usam a moeda como referência para determinar os preços em vez de olhar outras variáveis. Essas questões fazem com que a economia argentina seja muito sensível ao dólar.

E além disso tudo, quando se tem uma inflação elevada, os contratos, seja trabalhista, de alugueis, a frequência no aumento de preços, tudo isso se faz observando a inflação do mês anterior. E é aí que aparece a inércia. Por mais que você, hoje, faça uma política econômica de choque, os preços tardam a baixar porque estão sendo puxados por uma inércia que vem com o que passou com os preços anteriores. Por isso é difícil abaixar a inflação de um dia para o outro. Por mais que faça as coisas corretamente, não vejo como isso pode levar a que a inflação baixe para menos de dois dígitos de maneira sustentável para esse ano

O que vai contra as projeções do governo que prevê uma inflação de um dígito já depois de abril e até de consultorias que veem um dígito depois de meados do ano...

Sim, exatamente. Não acredito que a inflação de julho fique com um dígito. Para isso acontecer é necessário uma série de questões que são muito difíceis de acontecer. Tem que sustentar o programa econômico, tem que desvalorizar o câmbio, temos que ver o que vai acontecer com as paritárias [negociação entre sindicatos e empregadores por ajustes salariais]. Seria necessário que tudo saísse muito bem, o que é muito difícil na Argentina.

E como isso reflete no humor dos argentinos. Milei pede paciência para que sua política comece a dar resultados econômicos, mas com o passar do tempo fica difícil sustentar a paciência com o poder de compra despencando. Como equilibrar isso?

Esse é um grande tema. A sociedade argentina mostrou nas urnas que queria uma mudança, por isso votou em Milei, mas depois que se aumenta o preço da gasolina - que triplicou de um mês a outro -, quando não se aumentam os salários frente aos preços, eles são consumidos pela inflação. Isso faz a tolerância social desaparecer rapidamente. Então, creio que isso, junto com a derrota política recente, são os dois principais desafios que tem esse governo. Fazer com que a sociedade o acompanhe, mas para acompanhá-lo há de mostrar alguma melhora econômica, porque senão, em um par de meses, as reclamações vão ser fortes.

Quanto tempo?

Veja, na Argentina é sempre fundamental o tema da colheita. Abril e maio são os dois meses que se liquidam as exportações de soja e aí, com esses dólares, com uma estabilidade no tipo de câmbio - se não houver mais desvalorização - e com a inflação abaixando, aí sim deveríamos ver os salários se recompondo e isso faria com que a atividade econômica melhore.

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