Thomas Friedman: conclusões de um almoço com o presidente Biden

As entrelinhas me sussurraram: ele está preocupado por ter conseguido unir novamente o Ocidente mas não ser capaz de unir novamente os EUA

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Por Thomas Friedman*
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O presidente americano, Joe Biden, me convidou para almoçar na Casa Branca na última segunda-feira. Mas nossa conversa foi completamente em off — então, não posso lhes dizer nada do que ele falou.

Eu posso, porém, lhes dizer duas coisas: o que comi e como me senti depois. Comi um sanduíche de salada de atum com tomate, no pão integral, e de sobremesa uma tigela de frutas com um milkshake de chocolate tão bom que deveria ser proibido.

O que senti depois foi isso: Apesar de todos os babacas da Fox dizendo que Biden não consegue juntar duas frases, aqui vai uma notícia fresquinha: Ele juntou a Otan, a Europa e todo os aliados do Ocidente — do Canadá à Finlândia, até o Japão — para ajudar a Ucrânia a proteger sua jovem democracia do ataque fascista de Vladimir Putin.

Foi o melhor desempenho em administração e consolidação de aliança desde a atuação de um outro presidente cujo governo cobri e que admirei como pessoa — e que também diziam ser incapaz de juntar duas frases: George H.W. Bush. Bush ajudou a administrar o colapso da União Soviética e a reunificar a Alemanha, sem disparar nenhum tiro nem tirar a vida de nenhum americano.

Lamentavelmente, saí do nosso almoço de estômago cheio, mas com o coração pesado.

Biden não falou muito, mas nem precisou falar. As entrelinhas me sussurraram: Ele está preocupado por ter conseguido unir novamente o Ocidente mas não ser capaz de unir novamente os EUA.

Esta é claramente sua prioridade, acima de qualquer provisão da agenda Build Back Better. E ele sabe que foi isso o que o elegeu — uma maioria de americanos preocupados com o desfazimento da tessitura de seu país considerou que o velho cavalo de guerra chamado Biden, com seus instintos bipartidários, era a melhor pessoa para costurá-lo novamente. Foi por esta razão que Biden decidiu concorrer, em primeiro lugar, pois ele sabe que sem alguma unidade básica de propósitos e disposição para abrir concessões nada é possível.

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Mas a cada dia que passa, a cada massacre a tiros, a cada grito de guerra racista, a cada iniciativa de desfinanciamento da polícia, a cada deliberação desagregadora da Suprema Corte, a cada megafone que reverbera em universidades, a cada alegação falsa de fraude eleitoral, pergunto-me se ele será capaz de nos unir novamente. Pergunto-me se é tarde demais para isso.

Temo que estejamos prestes a quebrar algo muito valioso muito em breve. E uma vez que quebrarmos essa coisa, ela acabará — e nós poderemos jamais ser capazes de recuperá-la.

Estou falando da nossa capacidade de realizar transições de poder pacificamente e legitimamente, uma capacidade que demonstramos desde e fundação do nosso país. A transição de poder pacífica e legítima é a pedra fundamental da democracia americana. Se ela se romper, nenhuma das nossas instituições resistirá muito mais tempo, e seremos jogados num caos político e financeiro.

Estamos à beira desse abismo neste momento. Porque uma coisa é eleger Donald Trump e candidatos pró-Trump que querem restringir imigração, banir abortos, acabar com impostos para as empresas, extrair mais petróleo, coibir educação sexual nas escolas e desobrigar cidadãos a usar máscaras em meio a uma pandemia. Em relação a essas políticas pode haver uma discórdia legítima, que é a substância da política.

Mas as primárias recentes e as investigações em torno da insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio revelam um movimento de Trump e seus apoiadores que não é propelido por nenhum arcabouço coerente de políticas, mas, em vez disso, por uma gigantesca mentira — de que Biden não conquistou livremente e honestamente a maioria dos votos no Colégio Eleitoral e, portanto, é um presidente ilegítimo.

Manifestante pró-Trump levanta bandeira 'Stop the Steal' ('Parem o roubo', em tradução livre) três dias antes da invasão ao Capitólio  Foto: Stefani Reynolds / NYT

Logo, a maior prioridade deles é nomear candidatos cuja aliança principal é com Trump e sua Grande Mentira — não com a Constituição. E eles estão dando mais do que pistas de que em qualquer eleição apertada em 2024 — ou mesmo não tão apertada — eles estarão dispostos a romper com as regras e normas constitucionais estabelecidas e entregar essas eleições para Trump ou outros candidatos republicanos que na realidade não reuniram a maioria dos votos. Eles não estão sussurrando essa plataforma. Estão fazendo campanha sobre ela.

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Em resumo, estamos testemunhando um movimento nacional que nos diz publicamente e estridentemente: NÓS FAREMOS ISSO.

O que me apavora, porque: JÁ VI FAZEREM ISSO.

Minha experiência formativa em jornalismo foi cobrindo políticos libaneses fazendo isso no fim dos anos 70 e mergulhando sua frágil democracia numa prolongada guerra civil. Então não me digam que isso não pode acontecer por aqui.

Não enquanto pessoas como o senador estadual da Pensilvânia Doug Mastriano —um negacionista das eleições que marchou com a turba que invadiu o Capitólio no 6 de Janeiro — vencerem primárias do Partido Republicano para concorrer ao governo de Estados. Não tenham dúvida: Essas pessoas jamais fariam o que Al Gore fez em 2000 — submeter a decisão sobre o resultado eleitoral à Justiça numa eleição extremamente apertada e reconhecer seu oponente como presidente legítimo. E jamais farão o que republicanos com princípios, candidatos ou atuando como autoridades eleitorais, fizeram após a votação de 2020 — aceitar os votos conforme eles foram tabulados em seus Estados e aceitar as ordens da Justiça que confirmaram não ter ocorrido nenhuma irregularidade significativa, permitindo que Biden assumisse o poder legitimamente.

É revoltante ver o número de republicanos trumpistas fazendo campanhas afirmando como verdade a Grande Mentira de seu líder, quando nós sabemos que eles sabem que nós sabemos que eles sabem que nem mesmo eles acreditam numa só palavra que dizem. Falo de Mehmet Oz, JD Vance e muitos outros. Não obstante, eles estão prontos para pegar carona na locomotiva de Trump rumo ao poder. E fazem isso desavergonhadamente.

O ponto mais baixo, na minha visão, ocorreu quando o líder da minoria na Câmara dos Deputados, Kevin McCarthy, tão obcecado em virar presidente da Casa a qualquer custo, mentiu descaradamente a respeito de ter falado a verdade.

McCarthy negou publicamente o fato de que, após o 6 de Janeiro, ele disse explicitamente (e está gravado) aos seus colegas republicanos que Trump deveria sofrer impeachment por ter atiçado a insurreição e que tinha intenção de dizer a Trump que ele deveria renunciar.

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Quem, em sua vida, você já viu mentir afirmando não ter falado a verdade?

O que me traz de volta ao meu almoço com Biden. Claramente favorece o presidente o fato de termos construído uma aliança global para apoiar a Ucrânia, repelido a invasão russa e defendido no exterior os princípios fundamentais dos EUA — o direito a liberdade e autodeterminação de todos os povos — enquanto domesticamente o Partido Republicano abandona nossos princípios mais estimados.

Por este motivo que tantos líderes aliados disseram privadamente a Biden, enquanto ele e sua equipe ressuscitavam a aliança ocidental juntando os cacos em que Trump a deixou: “Graças a Deus, os EUA estão de volta”. E acrescentaram: “Mas por quanto tempo?”.

Biden não foi capaz de responder esta pergunta. Porque NÓS não somos capazes de respondê-la.

Biden não é isento de culpa em relação a este dilema, nem o Partido Democrata — particularmente sua ala de extrema esquerda. Sob pressão para reavivar a economia e enfrentando enormes exigências da extrema esquerda, Biden perseguiu a estratégia de gastos elevados por tempo demais. Deputados democratas também macularam uma das mais importantes realizações bipartidárias de Biden — seu gigantesco projeto de infraestrutura, tornando-o refém de outras demandas de gastos excessivos. A extrema esquerda também sobrecarregou Biden e todos os candidatos democratas com conceitos radicais como “desfinanciar a polícia” — um mantra tresloucado que teria prejudicado principalmente a base negra e hispânica do Partido Democrata se tivesse sido implementado.

Para derrotar o trumpismo precisamos que somente, digamos, 10% dos republicanos abandonem seu partido e se juntem à centro-esquerda de Biden, que ele foi eleito para defender e que ainda está em seu coração. Mas podemos não ser capazes de converter nem 1% dos republicanos se os democratas de extrema esquerda forem vistos como definidores do futuro do partido.

E foi por isso que saí do almoço com o presidente de estômago cheio, mas com o coração pesado. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO