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Thomas Friedman: Netanyahu está despedaçando a sociedade israelense

Até agora, Israel não tinha experimentado ao mesmo tempo uma intifada palestina, uma intifada de colonos judeus e uma intifada cidadã pela Justiça

Por Thomas Friedman
Atualização:

Israel é um boiler com muito vapor, vapor demais acumulando-se em seu tanque — que está prestes a explodir lançando seus parafusos em todas as direções.

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Ataques letais de palestinos jovens contra israelenses coincidem com uma expansão de assentamentos israelenses e colonos incendiando vilarejos palestinos. E também com um levante popular contra a manobra do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu para controlar o Judiciário. Juntos, esses fatores ameaçam provocar um rompimento na governança de Israel jamais visto no país.

Uma medida da gravidade da situação é o fato de vários ex-chefes do Mossad — alguns dos servidores públicos mais respeitados em Israel — terem denunciado o putsch (tentativa de golpe) de Netanyahu no Judiciário; mais recentemente, Danny Yatom se pronunciou. De acordo com o jornal Haaretz, ele disse ao noticiário televisivo israelense Channel 13 News, na noite do sábado, que se Netanyahu continuar com seus planos de eliminar de fato a independência da Suprema Corte, pilotos de caças de combate e operadores de forças especiais poderão desobedecer as ordens do governo legitimamente.

“Eles assinaram um contrato com um país democrático”, afirmou Yatom. “Mas no momento que, Deus nos livre, o país vira uma ditadura, e eles recebem uma ordem de um governo ilegítimo, acredito então que seria legítimo desobedecê-la.”

Não se trata de uma especulação vazia. Nos últimos dias, cerca de 250 oficiais da Divisão de Operações Especiais da Inteligência Militar assinaram uma carta pública declarando que “pararão de dar expediente” caso o governo vá adiante com sua reforma autocrática no Judiciário, segundo noticiou o jornal Times of Israel. Eles adicionaram suas vozes a grupos de pilotos militares de aeronaves, tanques e submarinos, assim como marinheiros e outros membros de forças especiais, que assinaram cartas similares”.

Israel nunca experimentou ao mesmo tempo uma intifada palestina, uma intifada de colonos judeus e uma intifada cidadã pela Justiça. Mas essa realidade começou a se desdobrar desde que o governo de extrema direita de Netanyahu assumiu.

Palestino caminha por carros destruídos por colonos judeus em Hawara, Cisjordânia Foto: Ohad Zwigenberg/AP - 27/2/2023

No domingo, um atirador palestino matou 2 judeus israelenses próximo a Nablus, para vingar as mortes de 11 palestinos pelas mãos de forças israelenses na cidade poucos dias antes. Os colonos, então, incendiaram e vandalizaram pelo menos 200 imóveis em quatro vilarejos palestinos na região em que a matança ocorreu. E isso ocorreu depois de aproximadamente 160 mil israelenses terem tomado as ruas de Tel-Aviv, na noite do sábado, para se opor à investida contra o Judiciário de Netanyahu, que havia afirmado aos ministros de seu gabinete: “Quero dar a vocês um punho para golpeá-los” — os manifestantes.

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Violência entre colonos e palestinos não é novidade. Mas no momento em que isso coincide com o governo mais ultranacionalista e ultraortodoxo na história de Israel — um país que agora é dirigido por fanáticos religiosos messiânicos, cujo objetivo é anexar toda a Cisjordânia e que agora controlam forças policiais, finanças e funções militares cruciais — os tradicionais ministros comedidos de Israel, que normalmente traçavam limites para evitar ações desse tipo, foram substituídos por servidores que pretendem apagar todas as linhas.

O novo fator, contudo, capaz de realmente arrebentar a democracia de Israel é o esquema de Netanyahu para essencialmente pôr fim à independência da Suprema Corte israelense sob a justificativa de “reforma judicial”. Ignorando pesquisas que mostram a maioria do público se opondo ao golpe no Judiciário — e apesar de apelos dos presidentes de Israel e EUA para postergar as mudanças até que elas possam ser submetidas a um diálogo nacional sobre o tema — Netanyahu e seus aliados extremistas estão se movimentando para simplesmente metê-las goela abaixo dos israelenses por meio da Knesset nas próximas semanas.

A velocidade vertiginosa da manobra expõe verdadeiramente a fraude completa de Netanyahu quando ele insiste docemente para líderes estrangeiros e jornalistas que pretende simplesmente aprovar uns poucos reparos técnicos, com objetivo de equiparar mais a Suprema Corte de Israel aos tribunais superiores de EUA, Canadá ou França.

Polícia montada é destacada para conter protestos em uma avenida em Tel-Aviv  Foto: Oded Balilty/AP - 1/3/2023

É mesmo? Façamo-nos, então, a seguinte pergunta: Que líder israelense arriscaria uma guerra civil dentro de seu país, uma fissura com judeus democratas em todo o planeta, um rompimento com os EUA, danos significativos ao milagre da alta tecnologia em Israel — e agora um diálogo público com militares israelenses afirmando que não morrerão para proteger uma ditadura. Que líder israelense arriscaria isso tudo apenas por alguns poucos ajustes técnicos no Judiciário?

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Netanyahu arriscaria isso tudo em troca de algo enorme, muito importante e pessoal. E trata-se de uma “reforma” no Judiciário que, ele tem esperança, acabaria com seu julgamento por acusações de quebra de confiança, suborno e fraude, que pode levá-lo à cadeia. A “reforma” no Judiciário também daria à sua coalizão de direita poder irrestrito para construir assentamentos coloniais onde quiser, tomar controle de qualquer terra palestina e despejar dinheiro de impostos em escolas religiosas de judaísmo ortodoxo, onde os jovens só têm de estudar apenas a Torá, não matemática, ciências ou literatura — nem servir ao Exército.

Em outras palavras, não há nada de honesto nessa “reforma” do Judiciário. Trata-se de uma manobra de poder que Netanyahu pretende operar para que, com um estalo de seu dedo — uma maioria simples, com um assento de margem na Knesset — ele seja capaz de reverter qualquer determinação da Suprema Corte.

É por isso que o movimento de protesto contra o golpe ao Judiciário continua a ganhar força. Israel não é a Hungria, onde o líder consegue simplesmente enfiar a autocracia goela abaixo das pessoas. Na noite de sábado, uma multidão massiva se reuniu no centro de Tel-Aviv para ouvir, entre outras personalidades, Ehud Barak, ex-primeiro-ministro e ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel. Barak não poderia ter sido mais claro a respeito do quão existencial este momento é para o país.

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Crise constitucional

Nas próximas semanas, se a coalizão de Netanyahu aprovar essas “novas leis ditatoriais”, conforme definiu Barak, elas serão “canceladas pela Suprema Corte”, classificadas como ilegais. Quando isso ocorrer, e o governo, então, der passos para anular a decisão da Suprema Corte, os quatro “zeladores” cruciais da segurança israelense — o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e os diretores do Mossad, do Shin Bet e da polícia — terão de decidir quem lhes dará as ordens. “Isso criará uma crise constitucional extremamente grave”, afirmou Barak.

“Se o limite for ultrapassado”, acrescentou ele, “e as leis ditatoriais forem colocadas em prática, a responsabilidade passará para nós, cidadãos do país. Nós teremos de seguir a tradição estabelecida por Gandhi, 80 anos atrás, na Índia, e por Martin Luther King, 60 anos atrás, nos EUA, de seguir o caminho da desobediência civil não violenta. (…) Esse é o direito, até o dever, dos cidadãos quando seus governos agem de maneiras que rompem as regras do jogo e contrariam as normas fundamentais do país e seus sistemas de valores”.

Finalmente, outra coisa que nunca vi antes: um banho de realidade de uma das startups mais descoladas de Israel. Na segunda-feira, Assaf Rappaport, diretor-executivo e cofundador da Wiz, uma startup de segurança na nuvem, anunciou que sua empresa tinha acabado de levantar US$ 300 milhões em uma rodada de investimentos de Série D, em uma avaliação em US$ 10 bilhões. Comumente, isso seria notícia muito boa para Israel, mas Rappaport afirmou que sua empresa não pode ignorar o que está acontecendo no país.

“Nós compartilhamos o luto das famílias que perderam entes amados no dia recente e estamos preocupados a respeito da rápida deterioração na segurança em ambos os lados”, afirmou ele. “Infelizmente, em face ao golpe no Judiciário, o dinheiro que nós levantamos não entrará em Israel. (…) Nós temos ciência de investidores e empreendedores preocupados que estão transferindo seu dinheiro para fora do país discretamente e de trabalhadores preocupados com seu futuro em Israel.”

“A Wiz tem sido bem-sucedida graças ao ecossistema excepcional que existe em Israel, mas agora estamos diante de uma ameaça existencial. Nós acreditamos que é crucial para o governo priorizar a tranquilidade e a segurança de seus cidadãos — e suspender qualquer manobra legislativa capaz de agravar a atual situação.”

Ei, Friedman, nesses dias parece que você só escreve sobre Ucrânia e Israel. Você não tem nada mais a dizer?

Não é acidente. Eu acredito que se a Ucrânia for conquistada por Vladimir Putin e Israel se tornar uma democracia fajuta, como a Hungria, o mundo inteiro rumará para um caminho equivocado.

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Israel é a única democracia verdadeira, com Judiciário independente, no Oriente Médio. A Ucrânia está defendendo a União Europeia, um motor gigantesco de estado de direito, livres-mercados, direitos humanos e normas democráticas, mesmo que nem todos os países da UE os adotem completamente. Se a democracia for minada na UE e em Israel, democracias de toda parte encontrarão mais perigo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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