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Um ano para recordar 1968

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Por Todd Gitlin
Atualização:

Este ano será carregado de comemorações de 1968. Merecidamente, aliás, porque aquele foi um ano fundamental no qual as convulsões de uma década convergiram e os EUA inclinaram-se à beira de um abismo. Afinal, foi o ano da ofensiva do Tet no Vietnã, o adeus televisionado à esperança de vitória naquela terrível guerra, a corrida presidencial de Eugene McCarthy, o levante na Universidade de Colúmbia, a decisão do presidente Lyndon Johnson de não concorrer a um segundo mandato, o assassinato de Martin Luther King Jr. e as turbulências subseqüentes, o assassinato de Robert Kennedy, os tumultos na Convenção Democrata em Chicago, o protesto do Miss América em Atlantic City, a "Estratégia Sulista" e a eleição de Richard Nixon, e, de quebra, as primeiras viagens tripuladas do Programa Apollo. Isso sem mencionar a Primavera de Praga, o levante estudantil francês, a invasão soviética da Checoslováquia e as saudações do Poder Negro pelos atletas John Carlos e Tommie Smith nas Olimpíadas da Cidade do México. Tudo isso aconteceu e merece a mais sóbria reflexão - e o repúdio de erros corriqueiros. Primeiro, o erro do êxtase das manchetes. Uma maneira errada de lembrar 1968 é vê-lo como puro espetáculo. É correto ver o ano como uma seqüencia de choques, mas errado desconsiderar o que merecia chocar a nação, mas não o fez. Entre os acontecimentos menos badalados que merecem ser lembrados, considerem o 8 de fevereiro, quando, em Orangeburg, Carolina do Sul, três estudantes que protestavam do lado de fora de um salão de boliche segregacionista foram mortos a tiros no local pela polícia, e outros 27 saíram feridos. Na ocasião, o governador Robert McNair, apesar das evidências, acusou os "defensores do Poder Negro" e lamentou que a "reputação de harmonia racial (do Estado) havia sido manchada". A polícia foi inocentada após um julgamento federal, mas, num julgamento local, Cleveland L. Sellers Jr. - defensor de direitos civis que estivera presente no salão de boliche dois dias antes - foi mandado à prisão por "tumulto". Segundo, o erro da repulsa ultrazelosa aos levantes, protestos, drogas e toda a esquisitice daquele ano, vistos como novas viagens a Gomorra. Nessa metáfora cultural, uma ordem social disciplinada e esplêndida, cedia sob a pressão de indulgências desenfreadas como LSD, estilos de cabelo unissex e pornografia. Erros factuais puros e simples acompanham essa versão. Para tomar dois exemplos: a violência em Chicago foi considerada um erro dos manifestantes, quando foi, sobretudo, uma ação policial, incluindo agentes provocadores; e também, ao contrário do mito, não houve um único sutiã queimado na manifestação em Atlantic City, embora outras peças tenham sido atiradas numa "Lata de Lixo da Liberdade", e uma ovelha tenha sido coroada Miss America. É uma distorção ainda maior condenar sexo, drogas e toda a estranheza daquele ano como "as indulgências de uns poucos da elite" - as palavras foram do ex-presidente da Câmara Newt Gingrich em seu momento de triunfo em 1995. Essa posição distorce completamente a dimensão de uma revolução de costa a costa no trabalho, nas Forças Armadas e também nas instituições de ensino. Mas 1968 foi também um ano de desejos utópicos, assoberbado por um erro que até hoje se repete nos santuários da esquerda não reconstruída: a adoração do inimigo do inimigo. Sob pressão do pensamento "ou isso ou aquilo", cresceu a suposição de que os piores sujeitos da esquerda deviam ser os melhores. Queridinhos da esquerda como Che Guevara e Huey Newton, dos Panteras Negras, foram celebrados com ignorância ou voluntária negação de seus modos rígidos e autoritários. Todos os tipos de drogas foram exaltados ou desculpados indiscriminadamente. Tudo que tivesse aparência de establishment era condenado. Quando todos os padrões internacionais eram rejeitados como elitismo, todo profissionalismo como imposição hierárquica, todas as instituições como prisões, todas as leis como opressão, o pensamento racional foi massacrado, e homens e mulheres honrados sofreram injustamente. A maneira certa de lembrar 1968 é dar a suas complicações o que elas merecem. O igualitarismo do movimento por direitos civis e o espírito de aventura cultural misturaram-se a toda uma miscelânea de reações jubilosas e desesperadas contra a supremacia branca, a guerra sem sentido, o materialismo vazio e a obediência passiva. O resultado foi uma sublevação contra todos os tipos de establishment, geralmente por razões boas e suficientes, embora os fins tenham sido muitas vezes violados pelos meios. No entanto, é verdade que milhões da geração de então e de gerações posteriores se libertaram para se tornarem no que pudessem e restaurarassem a dignidade do espírito americano. Avaliar a grandiosidade da sublevação é dar crédito ao poder duradouro da Revolução Americana, a seu apelo para as pessoas assumirem o controle das próprias vidas em busca da felicidade e da virtude. Podem-se lamentar os excessos de indulgência e reconhecer que os movimentos da época foram prelúdios para uma ampliação da democracia, da liberdade e da seriedade moral. O que houve de bom nesse imenso esforço supera o que houve de ruim, embora ele nos lembre das promessas não cumpridas. No emaranhado das muitas e vastas diferenças, neste ano de 2008 ainda é cedo para se dizer o que ainda reverbera 40 anos depois. Mas, no mínimo, os resultados em Iowa sugerem que os ideais estão vivos e os EUA fazem esforços intensos para renascer da beira da calamidade. Ampliando um provérbio de William Blake, a estrada do excesso, com o chão calçado pela inocência, ainda pode levar ao palácio da sabedoria. *Todd Gitlin é professor de jornalismo e sociologia na Universidade de Colúmbia. Escreveu este artigo para ?Los Angeles Times?.

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