Modern Love: Tornando-me uma mulher sem ela

Na ausência de minha mãe, estou aprendendo a construir uma identidade - e feminilidade - a partir de fragmentos, amigos, músicas e memórias

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Por Becky Miller
7 min de leitura

THE NEW YORK TIMES LIFE/STYLE - Minha mãe me disse para não começar a depilar as pernas sem contar a ela. Eu desobedeci. Em uma noite de novembro, quando eu tinha 11 anos, notei uma lâmina, enferrujada e roxa, me chamando no chuveiro. As pernas das minhas amigas não tinham pelos. Eu era a última, envergonhada e cansada de esperar.

Faltava uma hora para o jantar de Ação de Graças e 10 dias desde que minha mãe havia morrido por conta de um tumor cerebral. Os pelos da minha perna estavam começando a enrolar, e eu ansiava por canelas elegantes. Com as mãos trêmulas, passei a lâmina sobre minhas pernas.

Mais tarde, sentada entre meu avô e meu tio, me empanturrando de batatas e tortas, os pequenos cortes que fiz nas pernas sangraram sob meu jeans.

Agora eu manipulo uma lâmina com segurança, mas o sangue ainda escorre sempre que eu uso a pinça, arranco ou depilo com cera. Minha mãe, uma pediatra, explicou certa vez, enquanto eu me contorcia sobre meu espaguete na mesa de jantar, que também haveria sangue todo mês. Por mais que eu queira ser bonita, o que às vezes é extremo e, às vezes, não é nada, beleza dá trabalho, tira sangue.

Lembro-me apenas de algumas outras instruções da minha mãe. Sempre julgue um homem pelos sapatos. Nunca deixe ninguém te dizer que ser homem é melhor do que ser mulher. A única vantagem que os homens têm sobre as mulheres é que podem fazer xixi em pé.

Estou assustada porque me lembro pouco dessas declarações. Muitas vezes temo que alguma sabedoria retumbante e suave tenha saído de seus lábios há muito tempo e eu tenha perdido, que as lentes turvas da infância tenham me mantido no escuro. Não perdoo minha memória por não ter antecipado essa situação.

Minha mãe era legal sem fazer esforço. Suéteres escuros, sem maquiagem, cabelo desgrenhado, mas de alguma forma alinhado, o ocasional brinco pendurado, um ar de confiança e tranquilidade. Eu tento copiar seu jeito – os anéis nos meus dedos são todos dela, seu Chanel nº 5 (nunca usado) espera na minha cômoda, escovar meu cabelo é uma raridade e eu acho que minha recusa em aprender qualquer coisa sobre maquiagem é uma tentativa de não fazer esforço.

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Na ausência de minha mãe, estou aprendendo a construir uma identidade - e feminilidade - a partir de fragmentos, amigos, músicas e memórias Foto: Brian Rea

Mas não pensar requer um pensamento, e não preparar requer competência na arte de improvisar. Eu tenho cabelo, então devo pensar sobre o que fazer com ele. Coloco minhas meias, sapatos e calças mal ajustadas e desejo que meus cílios sejam mais longos e minhas mãos menores. Converso com minhas amigas sobre nossos seios, pílulas anticoncepcionais e má postura. Eu me pergunto quando tudo se tornará sem esforço.

Imagino minha mãe praticando e aprimorando sua marca. Na faculdade, aposto que ela deixou suas ideias e opiniões falarem por ela, levantando a mão na aula com frequência suficiente para que seus professores se lembrassem de seu nome. Eu a imagino caminhando para a aula ou para o trabalho pelo Central Park, aperfeiçoando seu passo, andando no ritmo certo com a postura certa, virando cabeças.

Se a mãe dela, minha avó, quisesse levá-la para fazer compras na Ann Taylor ou na Eileen Fisher, ela provavelmente diria que não, que estava bem com seus veludos. Se sua tia-avó Elsie lhe enviasse algum perfume de aniversário, ela poderia experimentar e decidir usá-lo regularmente porque o cheiro era bom, mesmo sendo um pouco de velhinha, assim como às vezes passo o perfume de minha tia-avó Joyce nos meus pulsos porque o cheiro é bom ao mesmo tempo que tem cheiro de velhinha.

Eu sei (porque as pessoas me disseram) que ela costumava ouvir os Rolling Stones em vinil. Aposto que ela ouviu os gemidos de Keith Richards em “Memory Motel”: “She got a mind of her own and she use it well. Mighty fine, ‘cuz she’s one of a kind.” (“Ela tem vontade própria e a usa bem. Muito bem, porque ela é única.”)

Aposto que seus amigos pensaram nela quando ouviram essas palavras. Ela era muito boa, única. Com o tempo, tento me ver nas palavras de Keith também.

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Quando a juíza Ruth Bader Ginsburg morreu, meus amigos e eu tínhamos certeza de que o caso Roe contra Wade não duraria. Preferindo um ou dois dias de cólicas à possibilidade de um filho, liguei para consultórios médicos para colocar um DIU. Minha colega de quarto veio comigo, e nós caminhamos até o médico em uma chuva torrencial, compartilhando fones de ouvido, a água inundando nossos sapatos.

“Ela não pode entrar com você”, disse a enfermeira.

Entrei no quarto e me deitei na mesa. Uma luz fluorescente me atingiu enquanto o médico falava. Apertei minha própria mão, estiquei o pescoço, olhos bem abertos, e percebi que nunca me senti mais como uma mulher ou mais como se precisasse da minha mãe.

Em uma das únicas postagens no Facebook da minha mãe, de 2011, ela escreveu: “Assistindo Thelma e Louise com B. Uau!”.

Seu conversível voando no Grand Canyon, uma imagem feminista selvagem de desafio até a morte, me deixou no chão e permaneceu em minha mente por anos. Foi a força da amizade e a morte mais viva que eu já vi. Elas atravessaram o oeste, sem deixar sujeira ou sangue se tornarem um obstáculo.

Elas estavam fugindo de maridos, namorados, estupradores e da polícia, mas era mais como se estivessem correndo em direção a algo melhor. Liguei para minha melhor amiga e contei o filme em detalhes. Mais tarde, ela me comprou uma regata “feminista”. Achei que ser feminista significava ser viva, sentir-se viva. O que mais minha mãe poderia estar tentando me mostrar?

Meu pai me conta histórias que ele lembra e age como ambos os pais na ausência de minha mãe. Ele recentemente redescobriu “Uptown Top Ranking”, uma música reggae gravada por Althea e Donna, duas adolescentes jamaicanas que brincaram em um estúdio de gravação em 1977 antes de ver sua música subir ao topo das paradas britânicas no ano seguinte.

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Meu pai tocou a música repetidamente no carro e explicou sua origem para quem quisesse ouvir. Durante um coquetel festivo, ele colocou para tocar e dançou. “Eram apenas duas adolescentes”, ele disse. “Elas fizeram essa música como uma brincadeira!”

Meu rosto ficou quente com a sugestão de que qualquer coisa sobre Althea e Donna fosse uma brincadeira. “Por que você diz isso? Porque elas são jovens e mulheres?”

Ele suspirou. “Por que você está bancando a vítima? Por que não ser apenas uma mulher segura e forte?”

Absorvi as palavras dele. Para ser forte e segura, eu tinha que canalizar tanta vivacidade quanto Althea e Donna, como Thelma e Louise. Mas eu não tinha nenhum disco de sucesso, nenhum conversível. Subi as escadas e vesti um dos suéteres da minha mãe.

Na mesa de jantar, eu esperava que meu tributo silencioso atualizasse minha força. Meu pai notou o tecido familiar e olhou para mim com olhos tristes. Os pontos macios pareciam um escudo frágil. Eu queria um mais resistente.

Minha família costumava chamar a música que minha mãe adorava de “música lenta da mamãe”. Elton John, Lucinda Williams, Paul Simon, The Velvet Underground. “Tiny Dancer” tocando na estrada me lembra de seus pés no painel, seu sorriso cúmplice, sua voz ruim para cantar.

Procuro sentido nos gostos dela – está lá, mas não totalmente vivo. Ou talvez eu simplesmente não me lembre direito. Se o melhor modelo que tenho se esvai, minha definição de feminilidade se torna maleável.

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Não posso me basear apenas em memórias fragmentadas e nebulosas, ou na vivacidade de uma mulher que não está mais viva. Devo basear minha feminilidade em mais de uma influência. Minha tia, uma jornalista. Minha orientadora do ensino médio, que tinha o mesmo piercing de cartilagem que eu. Ela me fez ouvir Foo Fighters e me deu conselhos calorosos.

Quando conheci o filme Juno, de Elliot Page, comprei Red Vines (marca de bala de alcaçuz) e Sunny-D (bebida de laranja) para ser como ela. Agora, eu reverencio Amy Winehouse, que era ao mesmo tempo uma feroz garota judia e uma alma torturada. Observo Lorelai Gilmore, que fala tão rápido e tem olhos tão azuis e lábios vermelhos que fico com ciúmes. Eu escuto Lauryn Hill, a rainha da emoção crua.

Como Maggie Nelson escreve em Os Argonautas: “‘A mãe de um filho adulto vê seu trabalho concluído e desfeito ao mesmo tempo’. Se isso for verdade, posso ter que suportar não apenas a raiva, mas também minha anulação. Alguém pode se preparar para sua anulação? Como minha mãe resistiu à minha? Por que continuo a desfazê-la, quando o que quero expressar acima de tudo é que a amo muito?”

Minha mãe nunca viu sua filha adulta. Nosso relacionamento está inacabado. Eu não vou desfazer o trabalho dela; Só anseio pela sua conclusão. Mas talvez toda mulher chegue a um ponto em que segurar a própria mão seja a melhor opção. Talvez toda mulher deva complementar, adicionar fragmentos, forçar a feminilidade até que ela pareça completa, sem esforço. Até que ela tenha o suficiente de si mesma para expressar – acima de tudo – que ela ama muito sua mãe. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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