“Olá. A pessoa para quem você está ligando é considerada desonesta pelo governo. Caso deseje continuar, isso poderá afetar sua posição no ranking do Sistema de Crédito Social.” A mensagem automática parece surreal, mas é disparada diariamente para pessoas que tentam ligar para moradores de Xiamen, na China, cujos nomes estão na lista negra de autoridades locais. Em dois anos, porém, essa prática pode se tornar regra no país, quando o governo cadastrar todos os quase 1,4 bilhão de cidadãos chineses em seu Sistema Nacional de Crédito Social.
A sociedade baseada em pontos que está em desenvolvimento na China é comparada ao episódio “Queda livre”, o primeiro da terceira temporada da série Black Mirror, produzida pelo serviço de streaming de vídeos Netflix. Ele conta a história de uma mulher que vive numa sociedade baseada nas redes sociais. Nela, as pessoas se avaliam o tempo todo, como fazem motoristas e passageiros no aplicativo de carona Uber. Na série de TV, dependendo da pontuação, a personagem ganha e perde o acesso a serviços públicos e privados – e vive um drama sobre a busca por ser mais popular.
Na China, a lógica do novo sistema é parecida, mas em vez de permitir que os cidadãos deem notas uns para os outros, a pontuação é conferida por um algoritmo. Ele analisará uma série de dados pessoais dos cidadãos chineses, entre eles histórico de pagamentos, publicações em redes sociais, comportamento no trânsito e em jogos online, e até se a pessoa cumpriu os limites do planejamento familiar. Quem tiver pontuação alta, poderá ganhar descontos e passar direto pela segurança no aeroporto. Os menos afortunados, porém, terão restrições para pegar trens ou aviões.
O Sistema Nacional de Crédito Social vai começar a funcionar oficialmente em 2020, mas já há versões do sistema em testes por cidades chinesas e empresas privadas. O programa faz parte de uma estratégia do Partido Comunista para monitorar os habitantes. O governo investe alto para tornar a ideia realidade: em julho de 2017, a China anunciou que investirá US$ 150 bilhões até 2030 em inteligência artificial, tecnologia que está no núcleo da nova plataforma.
“O sistema certamente encorajará as pessoas a obedecerem às regras”, diz Rachel Botsman, estudiosa do sistema chinês e autora do livro Who can you trust? How technology brought us together and why it might drive us apart, em entrevista ao Estado. “Mas também é uma ferramenta profundamente perturbadora que dará ao governo um controle sem precedentes.”
A China justifica a criação do ranking como forma de construir uma sociedade socialista harmoniosa. “É um método efetivo para estimular a confiança mútua e reduzir as contradições sociais”, diz o documento oficial que estabelece as diretrizes para a criação do sistema.
Para Fausto Godoy, professor de Relações Internacionais da ESPM, as justificativas são amparadas por um contexto histórico e social. “O povo chinês é muito pragmático, ligado a história e ao bem coletivo”, diz. “O governo ainda é visto como um ser divino que pensará no bem-estar de todos. Se ele diz que o sistema é bom, dificilmente isso será questionado.”
O governo chinês admite que será difícil construir do zero a tecnologia, já que os registros de crédito do país são falhos e, segundo o documento, a sociedade não foi moldada para viver num ambiente de honestidade. Mas o documento não alerta para possíveis impactos sociais, como a influência na escolha de amizades e relacionamentos afetivos. Isso porque a nota poderá ser influenciada pela pontuação de pessoas próximas, como parentes e amigos.
Voluntários. Ainda assim, chineses estão se cadastrando em sistemas em testes no país. Estima-se que 28 milhões de pessoas já tenham se cadastrado voluntariamente em algum sistema de ranking social na China. A maioria é formada por jovens, seduzidos pelas promessas de prioridade na seleção para vagas na universidade e emprego, além de empréstimos com juros mais baixos.
Há, porém, quem se sinta pressionado a participar, já que a pontuação é exigida por algumas empresas locais. É o caso da relações públicas Kathy, de 31 anos – assim como outros chineses entrevistados para essa reportagem, ela não informou seu sobrenome. Ela se cadastrou no Sesame Credit, da gigante Alibaba, para conseguir alugar um apartamento. “O aplicativo que usei para encontrar minha casa exigia o uso do Sesame Credit”, diz a chinesa, que mora em Pequim. “Eu estava relutante, mas não tive escolha.”
Embora já participem dos testes, muitos só enxergam os potenciais benefícios. “Tenho uma nota alta no Sesame Credit, de 736 pontos”, afirma Donna, de 26 anos, que vive na cidade de Chengdu, no sudoeste do país. Quando questionada sobre o que acontece com quem tem uma nota baixa, Donna diz que não sabe, rindo.
Para Rachel, os impactos podem mudar a vida na China de uma vez por todas. Jovens e pessoas com problemas psiquiátricos, que já sofrem pressão social, serão os mais afetados pela proposta ambiciosa do governo. “Seres humanos, com todas suas imperfeições, são muito mais que uma pontuação.”
China tem lei de proteção de dados pessoais
Por incrível que pareça, a China tem uma lei que estabelece parâmetros para proteção de dados pessoais. Trata-se da lei de cibersegurança, que entrou em vigor em junho do ano passado.
A lei estabelece critérios como a necessidade de as empresas pedirem o consentimento para coletar informações dos usuários de serviços online. “Ela dita as principais obrigações de privacidade de dados, como consentimento, e obriga as empresas a relatarem vazamentos de dados”, explica Richard Bird, advogado do escritório Freshfields Brockhaus Deringer, em Hong Kong, em um artigo.
Por outro lado, a mesma lei dá as bases para que o governo colete as informações de cidadãos chineses, tanto coletadas por empresas locais como estrangeiras, que operam no país.
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