Análise - Bloqueio de WhatsApp revela desapreço pela liberdade de comunicação

Na tarde da última segunda-feira, o País foi surpreendido mais uma vez por decisão judicial que determinou o bloqueio do aplicativo de mensagens WhatsApp em todo o território nacional. Cerca de 100 milhões de usuários viram-se impedidos de utilizar mecanismo de comunicação que se tornou tão corriqueiro quanto essencial nos mais diversos planos: de conversas familiares a interações profissionais, passando por discussões acadêmicas e de interesse público. De um dia para o outro, canais de contato foram cortados. Uma medida drástica. A decisão, já derrubada por instância superior nesta terça-feira, foi proferida sob a alegação de que a empresa responsável pelo WhatsApp teria deixado de cumprir ordem judicial que determinara o fornecimento de dados de determinado usuário do programa, investigado em processo criminal. Independentemente de qual fosse o conteúdo da ordem, o ponto central aqui é outro, mais grave: decisões como essa revelam desapreço pelas liberdades comunicativas protegidas, de forma enfática, pela Constituição.  Em 8 anos, o serviço de vídeos YouTube, o Facebook e o aplicativo Secret foram bloqueados uma vez cada um. Para o WhatsApp, é o terceiro bloqueio em dois anos. Ou seja, as suspensões vêm se tornando comuns. A despeito do inegável avanço institucional representado pelo Marco Civil da Internet, práticas judiciais como essas colocam o Brasil na contramão dos países democráticos em matéria de proteção aos direitos dos usuários da internet. Diversos organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) já emitiram declarações formais condenando esse tipo de ordem. Em todas as manifestações há um consenso: o pleno funcionamento das plataformas de internet diz não apenas com a liberdade econômica do prestador do serviço, mas também com o direito ao acesso à internet livre - que não deixa de ser uma nova forma, potencialmente mais inclusiva, de exercício das clássicas liberdades de expressão e de informação. O que se tem, portanto, é uma ofensa à essência mais genuína do constitucionalismo.  O excesso de restrição e a desproporção da decisão de bloqueio são manifestos, sobretudo pelo dano causado a conjunto amplíssimo de terceiros inocentes. A comparação com formas de comunicação tradicionais ajuda a esclarecer a incongruência: imagine-se que, para forçar certa operadora a cumprir ordem de interceptação telefônica, fosse determinada a suspensão de todas as linhas telefônicas do País. É essa a ordem de grandeza. Para muitos usuários, aplicativos de mensagens passaram a ser mais importantes do que os serviços tradicionais de telefonia, inclusive pela possibilidade de compartilhar documentos, imagens, vídeos. Esse é um fato da vida contemporânea que não pode ser atropelado pela visão tradicional de determinado magistrado, por relevantes que sejam suas motivações. Esse é um ponto importante: não se questiona que a investigação de crimes é uma atividade essencial do poder público, relacionada, inclusive, à tutela de outros direitos fundamentais. O mundo conectado de hoje produz muita informação sobre as mais diversas atividades dos cidadãos - tanto as lícitas quanto as ilícitas. Como decorrência disso, é comum que as autoridades se vejam na permanente tentação de buscar esses novos dados para combater a criminalidade. Há que se preservar, contudo, o limite que separa a eficiência do autoritarismo, não apenas em relação à coletividade de forma geral, mas também com os investigados.  É natural que o impacto da decisão sobre o conjunto de usuários inocentes ocupe o foco central do debate, mas é preocupante que quase ninguém esteja interessado em saber qual era o conteúdo da ordem judicial que deixou de ser atendida. Ainda mais quando notícias recentes, do Brasil e do exterior, dão conta de determinações judiciais intensamente invasivas e desprovidas de base legal específica, como a ordem de que se forneça todo o conteúdo armazenado de forma criptografada em smartphones. Atribuir aos juízes o poder de exigir toda e qualquer informação ou conteúdo particular - ainda por cima sob a ameaça de que se paralise a comunicações de milhões de usuários - é uma forma perigosa de se lidar com as novas tecnologias. Não fosse por outra razão, bastaria a constatação histórica de que tamanho poder, uma vez concedido, sempre se degradou em autoritarismo. O tema exige reflexão, e não naturalização. A internet tem o potencial de aproximar pessoas, libertar ideias de controles editoriais, reduzir custos, aumentar a eficiência e o pluralismo da vida econômica e social. Gradualmente, a tendência é que fatias cada vez maiores das atividades cotidianas sejam exercidas ou, de alguma forma, registradas no mundo digital. Este é um momento decisivo em que as sociedades, por suas leis e juízes, definirão o sentido da liberdade nesta nova etapa da revolução tecnológica. Resta saber de que lado estaremos ao fim desta quadra histórica.* Eduardo Mendonça, advogado em Brasília, professor de Direito Constitucional do UniCeub e coordenador-geral do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais

PUBLICIDADE

Por Eduardo Mendonça , Mariana Cunha e Melo
Atualização:

** Mariana Cunha e Melo, advogada em Brasília, consultora na organização britânica Index on Censorship e pesquisadora no Instituto de Tecnologia e Sociedade