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SOS Línguas

Colunista comenta relatório da Unesco sobre as línguas ameaçadas de extinção.

Por Ivan Lessa
Atualização:

A Unesco acaba de publicar uma nova edição de seu Atlas Interativo de Línguas em Perigo de Extinção. O Brasil é o terceiro país do mundo com línguas ameaçadas. Consta que no mundo, de um total de 6 mil línguas, 199 são faladas por menos de 10 pessoas. O número redondo de 200 deixou de sê-lo quando morreu, em janeiro deste ano, Marie Smith Jones, a última mulher a falar Eyak, um dialeto do Estado do Alasca. A primeira coisa que nos ocorre é dar os parabéns a nós mesmos por, entre as sobras da reforma, ou acordo ortográfico, terem nos deixado ressuscitar, ou chamar ao terreiro, como um pai de santo chama um exu, as letras w, y e k. A segunda é perguntar: se Marie Smith Jones era a última pessoa a fazer uso da língua, agora infelizmente extinta, com quem é que ela conversava? Falava sozinha, a pobre? Saía pelas ruas recitando o equivalente aos Lusíadas em eyak? Nunca saberemos. Ficará um mistério para toda a eternidade. Tal como o dialeto alasquiano. Vai-se uma língua, vai-se junto uma cultura. Todos nós, do Alasca ao Zimbábue, temos uma percepção particularíssima do mundo e é através da língua, fonema após fonema, que vamos tentando devassar o vasto mistério que nos cerca a todos. Cada pequena descoberta é uma pequena aproximação à realidade. Quem disse pela primeira vez "pássaro" foi também quem o inventou. Um "pássaro" no Quênia não é a mesma coisa que um "pássaro" em Goiás. São parecidos. Voam com semelhança. Mas um pássaro não é um pássaro não é um pássaro. Parafraseando as rosas de Gertrude Stein que, no fim das contas, eram uma só. O Atlas linguístico da Unesco reserva espaço também para o que chama de "línguas seguras". São aquelas faladas por 100 mil pessoas ou mais. Línguas que exercem poder e influência. As manda-chuvas das línguas. Feito o inglês e o mandarim. Até onde sei, o nosso português, do Brasil e de Portugal e outros países signatários do acordo, que é também reforma, é falado, mesmo que mal, por mais de 100 mil pessoas. No entanto, nos artigos que li a respeito da publicação, ele é atingido - sim, o verbo está correto - só de passagem. Segundo especialistas, e vamos chamá-los logo de linguistas, há 2.500 línguas em perigo ou "estado crítico". Esse perigo manifesta-se sob a forma de pressão. Pressão política, econômica e cultural, e, muitas vezes, militar também. Não é fato para causar surpresa que dois dos países mais em risco de sofrer sérios abalos em seu modo de falar são a Índia e o Brasil, em vista da tremenda migração das zonas rurais para as urbanas. Ambos, Brasil e Índia, passam por uma rápida transformação econômica. Desta forma, uma língua passa a representar modos de vida tradicionais cedendo às línguas dominantes. Em 1961, levaram nos cinemas uma chanchada chamada Um candango na Belacap , com Ankito, ora com biografia fartamente ilustrada, nas estantes. Sem saber, o filme registrava, logo no título, duas transformações linguísticas, dois neologismos. As transformações prosseguem. Prosseguem agora em outro tipo de chanchada, passada nas academias de letras e ciências de Brasil e Lisboa, conforme comentaria um tipo mais mal-humorado que os outros. A Unesco aponta as línguas "assassinas", que chama de "killers", não se passasse a organização no idioma do país de Barack Obama. As línguas "assassinas", como um "grande tubarão branco", são precisamente essas que ocorrem a qualquer cidadão médio: o inglês, o francês e o espanhol. Reconquistas século 21, digamos. O mar - esse mare nostrum - não está para peixinho miúdo. Encerremos pois, à antiga, tecendo loas a algumas das 12 ou mais línguas onde resta apenas uma única pessoa a praticá-las, no que voltamos à pergunta original: se é uma pessoa só, com quem fala ela? Às loas: O wintu-nomlaki. Praticado na zona ocidental da cidade de Sacramento, no estado da Califórnia. O livoniano. 30 mil pessoas se entendiam e desentendiam em livoniano, na Letônia, por volta do século 13. Há tentativas de reativar o idioma. Pouco provável que dê certo. O yahgan. Esse é chileno. Da ilha Navarino. Sabe-se o nome da senhorita (não pode ser senhora, senão o marido arranharia algumas palavras em yahganês) que o fala: Cristina Calderón. Longa vida a ela. O kaixiná. Essa é com a gente. E pertence com exclusividade a Raimundo Avelino, de 78 anos. A tribo dos Kaixanás, com cerca de 200 pessoas, se entendia em kaixiná, numa aldeia com o nome de Japurá, nas proximidades de um rio com o mesmo nome, no Estado do Amazonas. Foram, os kaixinás, desta para melhor, sobrou o bom Raimundo. Nem foi preciso a reforma ortográfica dar uma chegada à região. Qualquer tentativa de reviver a língua perdida será prontamente reformada e acordada segundo os moldes e padrões atuais. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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