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Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Onde começa o começo?

A tríade latifúndio, escravidão e monocultura de exportação e a gosma cultural da contrarreforma nos legaram um zero à esquerda em termos de tecnologia

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David Fromkin, um dos principais historiadores contemporâneos, professor da Universidade de Boston, certa vez concebeu uma anedota ao mesmo tempo deliciosa e cientificamente importante.

Ao começar seu curso semestral, fez a seus 50 alunos uma proposta deveras inusitada. Distribuiu-lhes pequenos envelopes identificados pelos respectivos nomes, cada um contendo meia folha de caderno. Cada aluno deveria responder em um parágrafo – não mais que um parágrafo – qual foi ou quais foram as causas da Primeira Guerra Mundial. Finda a operação, que foi breve, o professor começou a abrir os envelopes e ler as respostas para a turma. A primeira, por coincidência, foi o lugar-comum mais conhecido: “Um estudante sérvio matou a tiros o Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro presuntivo do trono austro-húngaro”.

Nos outros 49 envelopes, os estudantes deram rédea solta à imaginação. O segundo apontou uma causa distante no passado: o fato de Júlio César, violando as leis de Roma, ter cruzado o Rubicão e entrado na cidade com seu exército.

Rica e divertida, a experiência certamente mostrou aos jovens que determinar com exatidão onde um processo histórico começa, e por que começa, não é uma matéria tão simples como possa parecer. Essa história veio-me à mente outro dia, no programa apresentado por William Waack na TV CNN, quando tive o privilégio de participar de uma troca de ideias com o ex-deputado Roberto Brant, que ocupou uma cadeira na Câmara durante cinco mandatos consecutivos, e o jovem cientista político Carlos Melo, professor do Insper. O mote sugerido por William Waack foi “por que o Brasil não sai do lugar”. Por que nosso sistema político está há décadas afundado neste paradeiro, incapaz de aprimorar sua organização institucional e menos capaz ainda de levar à prática nossos ideais de crescimento econômico e bem-estar social.

Fosse eu um dos escolhidos pelo professor Fromkin para falar sobre o nosso modorrento sistema político, eu me concentraria em dois pontos: a contrarreforma e nossa fixação na ideia de um governo forte, quero dizer, personalista e autoritário. A contrarreforma, ou seja, o combate ao protestantismo deflagrado na Espanha por (Santo) Inácio de Loyola, porque dela proveio, por intermédio dos países latinos do Mediterrâneo, a principal influência que moldou a nossa cultura. A idolatria por governos fortes porque até hoje não conseguimos (e a contrarreforma não ajuda) nos livrar da obsessão personalista e populista, por mais que tentemos disfarçá-la como um correlato indispensável do sistema presidencialista de governo. Sobre tal sistema, bem antes dos desmandos perpetrados pelo sr. Donald Trump, eis o que escreveu o grande mestre francês Maurice Duverger: “O sistema presidencialista de governo só funciona nos Estados Unidos. Em toda a América Latina ele degenerou em presidencialismo, ou seja, em ditadura”.

Embora essa discussão se manifeste em muitos países, o Brasil é com certeza seu melhor exemplo: um caso de laboratório. Voltemos à contrarreforma. Quem se devotou às ciências humanas em sua juventude universitária decerto se recorda do desdém com que era tratada a obra clássica de Max Weber O Protestantismo e o Espírito do Capitalismo. Uma pena, pois uma simples olhada no mapa da Europa poderia ter-nos trazido valiosos esclarecimentos. Sem nenhum esforço, teríamos percebido que a contrarreforma paralisou o evolução científica e tecnológica nos países latinos do Mediterrâneo (Itália, Espanha e Portugal), deixando o campo aberto para que a Europa Atlântica, em especial a Inglaterra, assumisse a liderança em praticamente todos os campos do conhecimento.

É comum atribuir todos os males da colonização portuguesa à ocupação centrada na tríade latifúndio, escravidão e monocultura de exportação, mas não custa lembrar que a colonização do Brasil teve início quando Portugal, com sua minúscula população, já afundara em sua prolongada decadência. Antes disso, prestara uma contribuição decisiva à tecnologia, desvendando os segredos da navegação de longo curso e levando suas caravelas ao poente e ao levante: ao Alasca e ao Ceilão (“muito além da Taprobana”, como escreveu Camões). A tríade acima descrita e a gosma cultural da contrarreforma nos legaram um zero à esquerda em termos de tecnologia. Agora, no século 21, o aumento do ensino técnico começa a despertar em nós um ligeiro orgulho, mas poucos se lembram de que nossa primeira universidade (a do Rio de Janeiro) só veio a ser implantada em 1920, e poucos sabem que temos mais de 2 mil faculdades de Direito, a maioria de péssima qualidade.

Nos Estados Unidos, deu-se o oposto. Em 1862, segundo ano da Guerra de Secessão, Abraham Lincoln sancionou o projeto dos land-grant colleges, que concedia uma porção de terras federais com a condição de que criassem escolas voltadas para a tecnologia, “nas artes mecânicas e na agricultura”. Esse foi um dos impulsos decisivos para o país se industrializar aceleradamente, em 30 anos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Bolívar Lamounier

Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

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