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Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Vencer pela ciência: Fapesp

Redução dos recursos previstos à fundação na Constituição estadual compromete seu papel estratégico para a sustentabilidade do amparo à pesquisa e dos seus tempos próprios

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Os Estados Unidos no pós-Segunda Guerra conceberam um bem-sucedido sistema de ciência e inovação, levando em conta a complementaridade entre governo, indústria e universidades. Esse foi um dos componentes do seu poder no plano internacional.

O sistema norte-americano motivou os proponentes da criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na Constituição paulista de 1947, que estipularam os meios para efetivar seus objetivos: uma renda especial de sua privativa administração, proveniente de uma porcentagem do total da receita ordinária estadual.

A ideia a realizar de amparo à pesquisa levou o seu tempo. Tornou-se uma realidade graças ao descortino do governador Carvalho Pinto, que teve a iniciativa da lei autorizando o Poder Executivo estadual a instituir a Fapesp, que passou a existir em 1962.

Carvalho Pinto pôs em marcha a transferência dos recursos vinculados previstos na Constituição, mas deu à regularidade dessas transferências respaldo adicional. Implementou um Fundo Patrimonial – novidade na época – que se originou de recursos provenientes de exercícios orçamentários de anos anteriores, nos quais a inexistência da Fapesp impediu que fossem especificamente destinados ao amparo à pesquisa.

O objetivo do fundo é o de ter os meios próprios de um patrimônio rentável para enfrentar as incertezas das conjunturas – por exemplo, a queda de arrecadação estadual pela diminuição das atividades econômicas – e, assim, garantir a sustentabilidade da pesquisa, cujo tempo próprio requer ir além das dificuldades das circunstâncias econômico-financeiras.

A Fapesp definiu com precisão o que é amparo à pesquisa que patrocina: apoiar a pesquisa e não fazer a pesquisa; respaldar projetos baseados na sua idoneidade e qualidade limitados apenas pela extensão dos recursos disponíveis; não fazer restrições quanto ao gênero da pesquisa, reconhecendo a interdependência entre pesquisa básica e aplicada. Um critério inovador de governança da instituição foi o de limitar as despesas administrativas da Fapesp a um teto de 5% de seu orçamento (repasses do Tesouro e receitas próprias) para assegurar que os valores provenientes do contribuinte paulista fossem aplicados tendo em vista os seus fins.

O crescente patamar de realizações da Fapesp foi reconhecido pela Constituição paulista de 1989, que, atenta ao papel da pesquisa tecnológica, elevou o orçamento da fundação a um mínimo de 1% da receita tributária do Estado.

A inovadora visão estratégica da Fapesp tem sido decisiva para situar o nosso Estado no País e no mundo, pela importância do valor agregado de conhecimento gerado pelas pesquisas que patrocina. Sua sustentabilidade requer a estável e regular previsibilidade dos repasses dos recursos do Tesouro estadual, constitucionalmente estipulados.

Neste contexto, surpreende negativamente a decisão do governo estadual de abrir a possibilidade de diminuir em 30% os recursos destinados à Fapesp. Isso é uma ameaça ao bom trabalho da Fapesp, como apontaram em artigo recente (Folha, 9/5) Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, que souberam destacar o múltiplo e transversal acervo de suas realizações para o País, com a sensibilidade própria que vem caracterizando os seus escritos empenhados no debate dos problemas da pauta nacional.

O governo estadual alega que, em princípio, pode proceder a esta erosão de consistência de uma política pública comprovadamente bem-sucedida porque a Emenda 93/2016 da Constituição federal permite a desvinculação das receitas dos Estados em até 30%, a serem aplicadas em outras áreas.

São discutíveis os critérios de prioridade, conveniência e oportunidade justificadores da redução de 30% dos recursos orçamentários previstos na Constituição estadual a serem repassados anual e regularmente à Fapesp. Com efeito, é uma redução comprometedora do seu papel estratégico para a sustentabilidade do amparo à pesquisa e dos seus tempos próprios.

Essa redução é, também, contestável no plano jurídico, como apontam elementos de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2020, da qual foi relator o ministro Alexandre de Moraes, relacionada à redução dos recursos vinculados destinados à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, estipulada pela Constituição fluminense.

Nessa decisão, resta claro que a aplicação da chamada Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem) sobre o orçamento de uma entidade como a Fapesp não depende apenas da legislação orçamentária, pois encontra limite na livre escolha feita pela Constituição estadual de fixar orçamento, no caso, pelo parâmetro de 1% da receita tributária do Estado.

O nosso sistema constitucional é o de um federalismo cooperativo. Nesse sentido, a proposta de redução dos repasses previstos na Constituição de São Paulo à Fapesp é, para lembrar as palavras do ministro Moraes na decisão acima mencionada, um vício material de inconstitucionalidade que não pode ser ignorado nem justificado por discutíveis critérios de prioridade, conveniência e oportunidade.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, EX-PRESIDENTE DA FAPESP (2007-2015), FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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