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Opinião|A cultura na cesta básica dos brasileiros

O impacto social da Lei Rouanet precisa ser valorizado no debate público. Nossa bandeira é para que a arte seja encarada como um direito neste país

A Lei Rouanet é fundamental para uma sociedade que se pretende crítica, inventiva, viva e conectada com sua gente. Como proponente da lei de incentivo à cultura desde 1997, a associação Doutores da Alegria usa o mecanismo para levar adiante ações nos campos da cultura, saúde e assistência social. Sem o recurso de empresas e de pessoas que contribuem via lei, todos os anos, não seria possível impactar crianças internadas, acompanhantes e profissionais em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) que recebem este trabalho gratuitamente no País.

Avanços são necessários e precisam ser debatidos, mas é justo compreender os mecanismos da lei e seu impacto social, antes de fazer deduções baseadas em dados superficiais que se apresentam rotineiramente em redes sociais.

De maneira prática, a Lei Rouanet funciona assim: o governo federal permite que 4% do imposto a pagar de empresas e 6% de pessoas físicas seja destinado a ações culturais. Companhias artísticas e organizações que atuam com cultura inscrevem seus projetos, detalhando como eles beneficiam públicos vulnerabilizados. Uma comissão avalia os projetos e determina o valor total que estes proponentes podem captar, via lei, junto de empresas e pessoas. É uma maneira de girar a roda da economia criativa, responsável por mais de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que gera empregos e fortalece nossas raízes culturais.

A Doutores da Alegria se caracteriza como ação cultural porque seus palhaços e palhaças são artistas profissionais, remunerados por estarem duas vezes por semana em hospitais públicos e periféricos que não pagam nada por esse serviço. Mais de 80 profissionais trabalham na associação, que impacta indiretamente outras 320 pessoas. Em 30 anos de existência, com unidades em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, a Doutores da Alegria inspirou mais de 1,5 mil iniciativas pelo País e atendeu mais de 2,3 milhões de crianças hospitalizadas.

Para viabilizar esses projetos, que incluem uma escola, criações artísticas e um circuito cultural em hospitais, contamos com outros mecanismos de incentivo à cultura estaduais e municipais, como o Programa de Ação Cultural (ProAc), o Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais (Promac), o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca), o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fumcad), o Fomento à Cultura Carioca (Foca) e o Funcultura.

Ainda que a associação tenha credibilidade e reconhecimento – por exemplo, por meio do Prêmio Cultura e Saúde, iniciativa conjunta dos Ministérios da Cultura e da Saúde –, ela enfrentou, como outras entidades artísticas, inúmeros obstáculos para manter suas atividades. Em 2020, a Doutores da Alegria obteve autorização para captar R$ 8 milhões via Rouanet. Mas esperamos quase sete meses pela liberação dos recursos já mobilizados por contribuintes que apoiaram a causa. Usamos todas as nossas reservas para não parar o trabalho, ainda que a distância, durante a pandemia.

Depois, em 2021, o plano da associação para 2022 foi arquivado pela então Secretaria Especial de Cultura. O Decreto n.º 10.755 limitou a inscrição de planos anuais apenas para museus públicos, patrimônio imaterial e ações formativas de cultura. À época, muitos proponentes não conseguiram aprovar seus projetos e falava-se num apagão na cultura. Contra esse estigma, lançamos uma campanha nacional para mobilizar a sociedade civil e evitar que, aos 30 anos, encerrássemos nossas atividades.

Com diálogo, ética e responsabilidade, a associação enfim conseguiu autorização para adequar o plano e captar R$ 12 milhões. O recurso contribuiu com 30 meses de trabalho, de janeiro de 2021 a junho de 2023. Só em 2021, foram mais de 36 mil atendimentos em hospitais de São Paulo e do Recife.

Esse resgate histórico permite compreender as etapas que a Doutores da Alegria enfrentou durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. E foi no período de retorno presencial aos hospitais públicos, após a pandemia, que notamos crianças e adultos em extrema vulnerabilidade. De pacientes a profissionais de saúde, todos foram afetados em algum grau pelas consequências da crise sanitária, econômica e política que tem levado brasileiros à miséria. Nas poltronas do SUS agora descansam mulheres mais pobres, com menos oportunidades de emprego, cujo rendimento vem sendo corroído pela inflação e com dificuldades de garantir moradia e alimentação para seus filhos. Isso sem falar no aumento exacerbado da violência doméstica.

É hora de as empresas se comprometerem, usando recursos e sua posição social, para enfrentar essas sequelas. Pessoas precisam cobrar ações incisivas de seus governantes e apoiar organizações da sociedade civil que atuam na ponta – em hospitais, favelas, terras indígenas ou no Congresso Nacional.

Só o Estado tem o poder e a escala para melhorar a condição de vida de sua população, mas doar, via Lei Rouanet, é uma maneira de amparar o trabalho de profissionais da saúde, encorajar crianças a se engajarem no tratamento e melhorar as relações no ambiente hospitalar.

A arte abre janelas invisíveis e cura feridas emocionais. Nossa bandeira é para que ela seja encarada como um direito neste país. Que em 2023 a cultura possa fazer parte da cesta básica dos brasileiros.

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SOCIÓLOGO, É DIRETOR-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOUTORES DA ALEGRIA

Opinião por Luis Vieira da Rocha