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Opinião|As patentes de medicamentos e o interesse social

Aceitar mecanismos que permitam longos prazos de exclusividade ou outros de propriedade intelectual além dos já estabelecidos na lei pode afetar de forma estrutural a indústria no Brasil

Sempre que o Brasil adotou políticas públicas eficientes, encontrou empresários nacionais dispostos a compartilhar o risco e a construir juntos as soluções necessárias para o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional. Um exemplo disso é a indústria nacional de medicamentos, que hoje, em conjunto com outras empresas já instaladas no Brasil, é capaz de suprir mais de 65% dos medicamentos consumidos nos sistemas privado e público e representa mais de 50% do valor desses medicamentos.

Ao olharmos para o Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo considerando as suas peculiaridades atuais, é o único no mundo todo que permite a uma população de milhões de pessoas ter acesso a medicamentos e tratamento para suas doenças.

Obviamente, essa realidade não poderia estar dissociada de importantes políticas, que em trabalho coordenado ao longo do tempo criaram as condições possíveis para a ampliação deste acesso: a lei de patentes, a Lei dos Genéricos, a regulação na Anvisa, a regulação na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e o uso do poder de compra do Estado.

A lei de patentes, sob a égide do inciso XXIX do artigo 5.º da Constituição federal brasileira, regulamentou o tratado Trips (do inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), recepcionado no Brasil em 1995. Esse sistema legal de nossa Constituição federal e a Lei n.º 9.279/96 estabeleceram o direito de exploração exclusiva do detentor de uma patente, não somente na perspectiva de retorno individual para esse detentor, que investiu no desenvolvimento do produto ou processo protegido, mas especialmente considerando a necessidade de estimular a concorrência para que o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País fossem cada vez mais dinamizados com a introdução no mercado de novos produtos e processos.

Isso, na área da saúde e na realidade de uma economia emergente como a do Brasil, é uma condição fundamental. Especialmente depois que distorções importantes na legislação foram corrigidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.529, com a revogação do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial.

Em sistemas maduros em ciência, tecnologia e inovação, a concorrência se estabelece entre inovações. Isso, infelizmente, está muito longe de ser a realidade do Brasil, onde o sistema de patentes, para sua adoção equilibrada, deve considerar as características da economia local, sobretudo a capacidade inovativa da indústria aqui instalada e seu esforço para o desenvolvimento de inovações, sob pena de destruir todo o valor já alcançado e que deverá frutificar nas próximas décadas.

Aceitar mecanismos que permitam longos prazos de exclusividade das patentes ou outros mecanismos de propriedade intelectual, para além dos já estabelecidos na legislação atual, poderá afetar de forma estrutural a indústria no Brasil e aumentar o fosso de dependência das tecnologias já desenvolvidas em outros países. E, ainda, para agravar este cenário, vemos o Poder Judiciário brasileiro com uma imensa quantidade de ações promovidas por empresas estrangeiras, o que impacta na segurança jurídica dos investimentos nacionais e dificulta o desenvolvimento da indústria local.

A política de genéricos, neste esteio, foi de fundamental importância, porque a indústria local pode aprender, aprimorar processos, desenvolver seu parque tecnológico e adquirir a expertise necessária para produzir, em território nacional, medicamentos com preços mais acessíveis, contribuindo de forma significativa com a ampliação do atendimento do SUS para todos os brasileiros e lançando as bases para uma indústria capaz de produzir inovações no Brasil. Num país onde a cultura da inovação não foi considerada como uma das prioridades nos sistemas educacionais no passado mais longínquo, hoje temos um grande desafio a ser enfrentado. Acredito, porém, que com o esforço já consolidado pela indústria nacional na área de saúde e a coordenação adequada de políticas públicas, especialmente junto das universidades e das Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), ainda há tempo para reverter esse cenário.

A regulação sanitária da Anvisa e a regulação do preço do medicamento feita pela CMED são as outras ferramentas que, além das patentes, funcionam como política de fomento às inovações, porque são as portas de entrada do produto no mercado. A regulação sanitária hoje no Brasil é equiparada às melhores práticas no mundo todo, garantindo à população brasileira o acesso a medicamentos seguros, eficazes e de qualidade. A regulação de preços tem sido adotada porque o próprio Estado brasileiro compra medicamentos para atendimento do SUS. Mas há espaço para a construção de outras formas que permitam sua adoção para estimular o desenvolvimento local de inovações.

Por fim, o uso do poder de compra do Estado é uma das mais estratégicas e importantes ferramentas para permitir o adensamento tecnológico em território nacional. O Programa das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) tem um papel fundamental na formação das plataformas dos medicamentos biológicos e mostrou a todos que é possível, sim, o desenvolvimento local de medicamentos com alta tecnologia no País.

Portanto, a decisão de empresários nacionais de investir na consolidação de uma indústria de ampla base e inovadora, articulada com políticas públicas bem coordenadas, que instrumentalizem os sistemas indutores da inovação no desenvolvimento social, no SUS e na economia do Brasil, é que nos dará as respostas para o futuro que desejamos para a saúde dos brasileiros, para nossos filhos e às futuras gerações.

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DOUTORA EM DIREITO PELA PUC/SP, É VICE-PRESIDENTE EXECUTIVA DO GRUPO FARMABRASIL

Opinião por Adriana Diaféria Marwell