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Opinião|Cárcere, fator de crime

A pena aplicada pelo Estado ao autor de um crime, em cumprimento aos imperativos legais, não pode ser tida como instrumento de vingança ou de castigo

Há no Brasil questões de grande relevância para as quais a sociedade empresta pouca importância. Talvez esse desinteresse tenha como uma das razões o descaso dado pelo poder público. Refiro-me à questão penitenciária e ao seu respectivo sistema.

A inércia do Estado e a apatia da sociedade transformaram o encarceramento no Brasil num eficiente fator de crime. O primeiro despende fortunas na construção de presídios e a segunda se limita a exigir a prisão como única resposta à criminalidade. E nada mais fazem.

A Lei de Execução Penal criou mecanismos importantes na tentativa de adequar o homem preso às normas e exigências do convívio social, tornando-o elemento prestante à sociedade quando em liberdade.

O seu artigo primeiro reza que a execução penal tem por escopo fundamental a “harmônica integração social do condenado e do internado”. Em inúmeros artigos, traz o instrumental necessário para o alcance desse objetivo. No entanto, tal como outros diplomas legais, tornou-se neste aspecto da reintegração do detento letra morta. É um exemplo eloquente da existência de dois países: o Brasil legal e o Brasil real.

Logo em seu artigo 6.º, a lei determina que o preso seja classificado de acordo com seus antecedentes e sua personalidade, para que se cumpra o princípio constitucional da individualização da pena. A Constituição ainda prevê a preservação da integridade física e moral; a separação dos presos em presídios distintos de acordo com sua idade, natureza do crime e sexo; e que as mulheres permaneçam com seus filhos para amamentá-los.

Ao lado desses direitos, a Lei de Execução Penal impõe ao Estado o dever de prestar assistência material nos campos da saúde, da justiça, educação, social e religiosa. Uma obrigação do sistema é a de orientar e assistir o albergado e o egresso, por meio dos patronatos. No entanto, pouco amparo se dá ao egresso.

O rol dos descumprimentos da lei não caberia no espaço deste artigo. Basta que se observe a notória carência de assistência médica e jurídica a que estão relegados os homens e as mulheres que cumprem pena de prisão.

Deve-se ter presente que a primeira e mais grave agressão ao preso é contra a sua dignidade humana, protegida no frontispício da Constituição federal (artigo 1.º, inciso III). A degradação física e moral a que são submetidos centenas de mulheres e de homens encarcerados deveria ser motivo de mobilização geral, para emprestar humanidade ao cumprimento de pena.

A sociedade precisa ter presente que o preso não ficará detido para sempre – este seria o desejo oculto de muitos. Assim, se não por uma questão de humanidade, mas da própria preservação, deveria-se cuidar do encarcerado. Tal como se apresenta hoje, o sistema penitenciário transformou-se em eficiente fator de aumento de criminalidade. Durante o cumprimento da pena, a carga criminógena aumenta substancialmente. Não se pense que o encarcerado é apenas o perigoso criminoso. Prende-se, e muito, o autor de pequenos delitos, insignificantes crimes. Revoltado com a desnecessária pena, refém do crime organizado, violentado física e moralmente, ele adquire um incontrolável ódio pela sociedade. Lembre-se de que em liberdade as oportunidades de trabalho são escassas, a sua família pode estar desfeita, restando-lhe para sobreviver a volta ao crime.

A prisão atualmente, sob a influência da cultura punitiva que se apossou do País, está sendo muito mal decretada pelo Poder Judiciário. Prende-se de forma descriteriosa, sem qualquer avaliação de sua necessidade. Prisões preventivas continuam a ser decretadas a mancheia. Embora a lei preveja medidas cautelares em substituição, não são poucos os juízes que hesitam em aplicá-las.

Também com previsão legal, as audiências de custódia, outro extraordinário avanço da Justiça Penal para corrigir excessos de prisões preventivas, estão sendo utilizadas com parcimônia. Ademais, a polícia tem decretado flagrantes desnecessários em face de crimes de mínima gravidade, inclusive os de natureza famélica. O apego à letra fria da lei conduz a graves injustiças, com nefastas consequências futuras para a sociedade.

A pena aplicada pelo Estado ao autor de um crime, em cumprimento aos imperativos legais, não pode ser tida como instrumento de vingança ou de castigo. Em termos globais, observa-se que as prisões não estão inibindo o avanço da criminalidade. No Brasil há aproximadamente 700 mil presos, e a criminalidade está sempre em crescimento. Tanto a prisão não impede a prática de novos crimes que 70% dos atuais presos já estiveram no cárcere e a ele voltaram.

Tivemos, com o surto de covid-19, uma demonstração de insensibilidade em relação aos homens e mulheres encarcerados. Centenas morreram sem assistência e não se sabe até hoje o número de contaminados e de mortos.

O crime e a prisão são fatos humanos, que potencialmente podem nos atingir ou a alguém ligado a nós. Assim, não se pode retirá-los do nosso foco de atenção. Cuidar do sistema penitenciário é uma obrigação humanitária de interesse de toda a sociedade.

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ADVOGADO

Opinião por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Advogado