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Opinião|De volta a Yalta

Lugar no qual foram lançadas as bases da reorganização política do mundo é hoje o principal nó górdio internacional

Em algumas semanas o célebre encontro de Yalta entre os três líderes dos países vencedores da 2.ª Guerra Mundial (Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Josef Stalin) celebrará seu 77.º aniversário. O encontro dos “Três Grandes” foi um marco ao final do conflito, pois redesenhou a política internacional de maneira razoavelmente bem-sucedida e evitou uma terceira catástrofe bélica de proporções mundiais. Foi em Yalta que, por exemplo, o sistema de segurança coletiva hoje representado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e seu veto foram cristalizados.

Os acordos de Yalta, bem como seus bastidores, são minuciosamente narrados por historiadores e encontram-se também nas memórias de um de seus participantes, Winston Churchill, que escreveu: “Nunca nesta guerra senti a responsabilidade pesar tanto sobre mim, mesmo nas horas mais sombrias, como agora durante esta conferência”. Idealizar os rumos de uma Europa ainda em guerra, tentando decidir o futuro da Polônia e o que seguiria no Extremo Oriente certamente não era tarefa fácil no jogo de força.

Yalta situa-se a 80 quilômetros de Simferopol, capital da Crimeia, hoje ocupada pela Rússia, assim como outras regiões da Ucrânia. Há um certo simbolismo no fato de que o lugar no qual foram lançadas as bases da reorganização política e jurídica do mundo seja hoje também o principal nó górdio da organização internacional. O revisitar da História, sábia senhora do tempo, em momentos de efeméride pode trazer algumas reflexões sobre os acordos daqueles tempos e os novos acordos que tentativamente se esboçam nos tempos atuais. Por isso, vale voltar a Yalta.

Diversas leituras podem ser feitas para compreender o que ocorreram naqueles oito dias da península da Crimeia que finalizaram os ajustes de Dumbarton Oaks na área econômica e financeira. Mas em essência pode-se dizer que os poderes do mundo encontraram um arranjo minimamente aceitável para evitar tensões, definindo zonas de influência e relegando assuntos “espinhosos” ao futuro. No atual concerto de nações, uma segunda Yalta não seria possível porque exigiria a participação de muito mais que três países. Contudo, Yalta teve o mérito de apaziguar, ou pelo menos de abrandar as tensões entre o Oeste e o Leste. Nenhuma das partes obteve contentamento total, mas acordaram naquilo que era possível.

O mundo está desenhando diariamente sua nova Yalta de maneira muito mais pulverizada. Mais do que nunca, ela acontece nas constantes trocas entre os líderes globais e seus alinhamentos. Emmanuel Macron e Joe Biden reforçam sua aliança do norte global em relação à guerra, problemas energéticos e o crescente problema climático. A China volta seus olhos ao Golfo, que dialoga mais abertamente com novas alianças. A África repensa sua posição global, ora disposta a balançar a leste, ora realinhando-se ao Ocidente, ora voltando-se a si mesma. A América do Sul também pendula entre governos de direita e esquerda que alinham-se em suas políticas. O dinâmico circular de posicionamentos reforça uma Yalta quotidianamente.

Nesse contexto complexo, com uma guerra em curso (e tantos outros conflitos mundiais tão sérios quanto – mas que, por não ameaçarem Yalta, não ganham nossa atenção) e ameaças nucleares ocupando manchetes dos jornais nos principais meios de comunicação do planeta, os olhos se voltam ao Brasil e seu novo governo, disposto, mais do que nunca, “a voltar ao jogo”. O Brasil mais uma vez pode ocupar seu natural espaço de liderança regional e ocupar novamente uma voz à mesa das importantes negociações.

Como em Yalta, todo projeto político é lastreado por institutos e instituições jurídicas. Muito em breve, o Brasil também terá de orientar sua política externa jurídica, sua posição em relação à guerra e em uma série de outros foros. Seja diante de tribunais internacionais (com os casos consultivos da Palestina e de mudanças climáticas) e em negociações e aderência a importantes tratados, como as questões de empresas e de direitos humanos, o tratado de proibição de armas nucleares e a tramitação do Acordo de Escazú sobre participação ambiental. A integração regional necessariamente precisa ser repensada, bem como as cooperações relativas a universidades e circulação de conhecimento. É mais uma vez o momento de privilegiar a ciência e usar a academia na diplomacia. Ao tomar decisões pontuais, o Brasil sinalizará inquestionavelmente qual é o tipo de jogo, liderança e estratégias que seguirá. Tarefas não fáceis aguardam os formuladores de nossa política externa jurídica. Os 77 anos de Yalta parecem oferecer boas oportunidades ao Brasil.

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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, PESQUISADOR VISITANTE NA UNIVERSITÉ PARIS 1 PANTHEÓN-SORBONNE, É MEMBRO DA DIRETORIA DO RAMO BRASILEIRO DA INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION

Opinião por Lucas Carlos Lima