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Opinião|Desfazendo sofismas

Alegação de que a Lei do Rol aumentaria a insegurança do mercado de planos de saúde é feita apenas em abstrato, sem fundamentos empíricos, apresentando-se na prática como uma hipótese

A carga de conflito e litigiosidade que o setor de planos de saúde carrega não é novidade para ninguém. É corriqueiro o ressurgimento de discussões no debate público em torno dos mesmos temas: de um lado, a alegada crise e ameaças à sustentabilidade do setor e, de outro, variados registros de descumprimentos contratuais das empresas contra seus clientes. E, dentre essas disputas, destaca-se uma que, apesar de sempre reavivada, em diversos meios e situações, nunca é de fato resolvida: a judicialização de coberturas.

Desde há muito, é notável o fenômeno de usuários que litigam contra operadoras de planos para questionar negativas de cobertura. Contudo, a discussão em torno dele ganhou contornos diferenciados em 2022, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ofereceu uma solução polêmica para os dilemas de atendimento, alterando o entendimento até então prevalente nos tribunais. A Corte decidiu que a lista de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória elaborada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o chamado rol da ANS, seria taxativa, permitindo que os planos limitassem a cobertura oferecida aos serviços ali previstos.

Esse entendimento gerou uma forte reação da sociedade civil, cuja mobilização resultou na promulgação da Lei n.º 14.454/2022 (Lei do Rol). Com isso, a Lei dos Planos de Saúde passou a prever explicitamente que planos devem cobrir tratamentos fora do rol, desde que haja evidências científicas demonstrando sua eficácia, ou que já tenha sido aprovado para utilização no SUS ou em outros sistemas de saúde.

No entanto, mais de um ano depois da aprovação da Lei do Rol, a questão está longe de ser pacificada. Ao passo que reclamações contra planos de saúde atingem recordes históricos, o Supremo Tribunal Federal (STF), tendo já julgado o tema em ações anteriores e reconhecido que a Lei do Rol confere solução adequada às questões de cobertura, aguarda para tomar uma nova decisão específica sobre a constitucionalidade da lei, em ação proposta por uma associação de operadoras de planos de saúde.

Um dos argumentos centrais das empresas é de que os critérios de cobertura estabelecidos pela Lei do Rol criariam insegurança jurídica e incentivariam a judicialização, aumentando o passivo judicial e os riscos de operação a ponto de inviabilizar economicamente o setor. Segundo essa visão, a não taxatividade do rol criaria incerteza sobre a amplitude da cobertura, que por sua vez causaria um aumento no volume total de ações judiciais e, ainda, nos custos de funcionamento do sistema de saúde.

Para além da discussão mais ampla sobre a sustentabilidade do mercado de planos, é necessário tratar rigorosamente os pressupostos que orientam a discussão sobre judicialização. A alegação de que a Lei do Rol aumentaria a insegurança do mercado é feita apenas em abstrato, sem fundamentos empíricos, apresentando-se na prática como uma hipótese. E é aí que reside a virada de chave inovadora da pesquisa que o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) publicaram em fevereiro deste ano, com dados inéditos sobre ações tratando de negativas de cobertura ajuizadas por pessoas físicas contra operadoras de planos de saúde no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entre janeiro de 2019 e agosto de 2023.

A pesquisa demonstra que, durante praticamente o primeiro ano inteiro de vigência da Lei do Rol, não foi possível verificar aumentos relevantes no número de ações relacionadas a negativas de cobertura propostas contra planos de saúde. Os achados mostram, ainda, que a judicialização, que já vinha em tendência crescente desde o início de 2019, atingiu seu ápice durante a pandemia, observando-se uma tendência de queda a partir do segundo semestre de 2022, justamente quando foi realizado o julgamento do STJ e publicada a Lei do Rol. Em janeiro de 2023, as ações atingiram o menor nível de todo o período e, a partir de então, retomaram a tendência de crescimento, mas mantendo-se em patamares próximos aos pré-pandêmicos.

Apesar de iniciais, os dados da pesquisa constituem evidência relevante a ser levada em consideração pelo STF no julgamento de constitucionalidade da Lei do Rol, bem como pela comunidade acadêmica no momento de pautar o debate. Alegações sobre as causas do aumento no volume de litigância e seus reflexos no custeio do sistema devem ser apresentadas acompanhadas de evidências empíricas rigorosas e com indicação das premissas e dados utilizados.

É preciso reverter este ciclo e pautar decisões de tamanho impacto nas melhores evidências disponíveis, inclusive com o aprofundamento de estudos e pesquisas que permitam identificar as verdadeiras causas do problema da judicialização. Caso contrário, um novo julgamento, mal informado, pode apenas ajudar a intensificar o problema e perpetuar os conflitos do setor, sem efetivamente tutelar o sistema, tomando em consideração a sua viabilidade financeira, mas também o interesse legítimo e a saúde de mais de 50 milhões de usuários de planos.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PESQUISADOR DA PUC-SP E PESQUISADORAS DO IDEC

Opinião por Marcelo Guedes Nunes

Pesquisador da PUC-SP

Marina Magalhães

Pesquisadora do Idec

Ana Carolina Navarrete

Pesquisadora do Idec