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Opinião|Dívidas nacionais, capitalismo e políticas socioeconômicas

Um dos principais objetivos de governações democráticas deve ser o de evitar escaladas de endividamento externo, de desvalorização cambial e de aumento da inflação

Por João Paulo Avelãs Nunes

Não sendo economista, considero que é relevante explicitar uma proposta historiográfico-ideológica, sobretudo qualitativa, de reconstituição e análise, de contextualização e comparação do fenômeno das presentes dívidas nacionais descontroladas. Saliento que, para além de imediatas sequelas sociais e econômicas, os processos em causa tendem também a gerar, no médio prazo, consequências ideológicas, políticas e diplomáticas. Defendo, ainda, que, perante o que já se conhece acerca da história do século 20 e do pós-guerra fria, é importante conceber e aplicar hoje soluções compatíveis com as lógicas de funcionamento da economia-mundo capitalista.

Depois da “crise de 2008″, para além de países subdesenvolvidos (por exemplo, a Argentina), também Estados de desenvolvimento intermediário voltaram a conhecer situações de endividamento externo inviável (entre outros, Grécia, Portugal, Espanha e Itália). Em sentido inverso, países subdesenvolvidos antes com problemas crônicos de sobre-endividamento externo conseguiram alcançar e manter uma relativa estabilidade financeira (veja-se o exemplo do Brasil). Deparamo-nos, igualmente, quer com Estados autônomos, quer com países participantes de processos de integração subcontinental.

Face às implicações econômico-financeiras, socioculturais e político-diplomáticas do sobre-endividamento externo, penso que um dos principais objetivos de governações democráticas — de centro-esquerda, de centro-direita, de esquerda ou de direita — deve ser o de evitar escaladas de endividamento externo, de desvalorização cambial e de aumento da inflação. O sobre-endividamento externo tem gerado perda de soberania e de capacidade negocial, aumento das desigualdades sociais e das formas de discriminação, crise da democracia e do multilateralismo, maiores atrasos no esforço de recuperação dos equilíbrios ambientais e de poupança de recursos naturais não renováveis, maior recusa do caráter multicultural das sociedades e governança mais intolerante dessa mesma multiculturalidade.

Quaisquer que sejam os condicionalismos explicativos de uma determinada situação de sobre-endividamento (funcionamento assimétrico da economia à escala subcontinental ou global, crise de origem extraeconômica, governação neocorporativista ou coletivista e protecionista ou autárcica, governação populista, elevados níveis de corrupção e de nepotismo, etc.), advogo que uma governação não radicalizada deve procurar ultrapassar essa mesma contingência tão rapidamente quanto possível. Entre os mecanismos mobilizáveis complementarmente para a atenuação do sobre-endividamento, destacaria fatores de âmbito internacional, de âmbito nacional e relacionados com a teoria econômica adotada em ambos os âmbitos.

No plano internacional, realce para esforços de renegociação – perdão parcial ou reestruturação – da dívida externa; para o assumir de compromissos de corte de despesas e de investimentos desde que não ponham em causa princípios fundamentais e/ou interesses estratégicos; para a aceitação de processos de privatização desde que não ponham em causa interesses estratégicos; para o assumir de compromissos quanto ao aumento da produção e da produtividade, da competitividade e da internacionalização da economia em causa; para o assumir de compromissos quanto à diminuição da precariedade, das desigualdades e das modalidades de discriminação. Realce, ainda, para a participação em ou para a dinamização de iniciativas democráticas e multilaterais de integração subcontinental (além da União Europeia, evoco a possibilidade de uma entidade agregadora do conjunto da América Latina ou, pelo menos, da América do Sul).

No âmbito nacional, saliento o combate a formas de corrupção e de nepotismo; o corte de despesas decorrentes de situações de privilégio ou de ineficácia no sistema político, no aparelho de Estado e na sociedade civil. Destaco, igualmente, a introdução de melhorias qualitativas no funcionamento do aparelho de Estado, nomeadamente no que concerne ao apoio a organizações da sociedade civil (empresas privadas e cooperativas incluídas) e à mobilização das competências dos funcionários públicos; o regular estabelecimento de prioridades estratégicas para a alocação de recursos financeiros menos ou mais volumosos.

De modo a consolidar as soluções adotadas e a promover desenvolvimento integrado e sustentável — fundado no respeito pelos indivíduos, na apropriação crítica do conhecimento, no aumento do valor acrescentado da atividade econômica, no planeamento do território, na recuperação dos equilíbrios ambientais e na poupança de recursos naturais não renováveis —, as políticas socioeconômicas voltariam a basear-se no keynesianismo ou no estruturalismo e na globalização regulada, isto é, no modelo de “Estado-providência”. Esses governos abandonariam, assim, por um lado, as concepções monetaristas e a globalização neoliberal; por outro lado, as concepções neocorporativistas ou coletivistas e o protecionismo ou a autarcia.

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HISTORIADOR, É DOCENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (PORTUGAL). E-MAIL: JPAVELAS@FL.UC.PT

Opinião por João Paulo Avelãs Nunes

Historiador, é docente da Universidade de Coimbra (Portugal). E-mail: jpavelas@fl.uc.pt