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Opinião|Espelho, espelho nosso

A demonização da política até pode servir de disfarce, todavia não empana nossa cumplicidade com o atual estado de coisas

“Políticos são todos iguais.” A máxima dando conta de que a classe política se encerra num conjunto uniforme, afeito a vícios morais de toda sorte e práticas reprováveis, é amplamente acolhida pela sociedade há gerações. Não sem motivo. Quiçá desde a Primeira República somos assombrados pela constatação, resignada, de que castas privilegiadas não só pairam como sobrepujam nossa existência. A figura do coroné, oligarca poderoso a ponto de torcer o braço da democracia por meio de artimanhas como o voto de cabresto, até hoje não saiu de moda.

Tanta frustração faz sentido, contudo não absolve.

Há poucos dias, quando do anúncio da prisão dos irmãos Brazão por suspeita de terem mandado executar a vereadora Marielle Franco, em ação que também vitimou o motorista Anderson Gomes, o que mais instigou boa parte das pessoas não foram os detalhes da investigação ou a possibilidade de novos desdobramentos, mas jeitos de atribuir a culpa da barbárie ao espectro ideológico rival. Ligeireza que não se oferecia trivial, porém.

Em 2008, Domingos e Chiquinho Brazão fizeram parte de uma frente ampla em favor de Eduardo Paes, então peemedebista, na disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Assim como Dilma Rousseff, à época ministra da Casa Civil e para quem Domingos faria campanha em 2014 – ao lado de Eduardo Cunha, personagem decisivo no seu impeachment. Meses depois, precisamente em abril de 2015, Flávio Bolsonaro foi um dos 61 deputados que votaram a favor de Domingos para o Conselho do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ). A lista de apoios também contou com endossos petistas, entre eles o de André Ceciliano, atual secretário especial de Assuntos Federativos da Secretaria de Relações Institucionais do governo Lula. À época, não custa lembrar, Domingos já era citado por improbidade administrativa, acusado de compra de votos pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e absolvido da acusação de homicídio. Por sua vez, Chiquinho, que até fevereiro deste ano ocupava o cargo de secretário especial da gestão de Paes, sempre na prefeitura, integrou carreatas de Jair Bolsonaro.

Como se vê, nem mesmo um ambiente de debate tão ruidoso como o nosso, propício para a disseminação de açodamentos, pode dar conta de uma realidade tão fluida, em que constância partidária e retidão ideológica perdem de lavada para acordos e oportunidades políticas. Só nos resta, assim, insisto, enfrentar o gritante óbvio: à guisa de justificativa pelo mais absoluto desinteresse que dispensamos pela política, sua demonização até pode servir de disfarce, todavia não empana nossa cumplicidade com o atual estado de coisas.

Só nos restaria. Na prática, entretanto, continuamos a enxergar políticos como se não saíssem do nosso mesmíssimo convívio. Vale dizer, da mesmíssima sociedade que o execra.

Alguém haverá de dizer que não é bem assim. Que nem todos os políticos são abominados. Que, inclusive, existem os tratados como ídolos. Salvadores da Pátria. Exceções em meio a um lamaçal ético. Pois errará. O político adulado, afinal, apenas confirma este cenário em que nos eximimos de culpa. O sentimento por ele é outro, decerto, mas, assim como no caso do desprezado, existe para nos livrar de responsabilidade.

Diagnóstico bom ajuda, mas não é remédio. Sobretudo se aponta moléstia antiga, seus sintomas numerosos; repetidos ao longo de décadas. De Getúlio Vargas a João Goulart, de Leonel Brizola a Jânio Quadros, de Fernando Collor a Dilma Rousseff, chegando até Lula e Bolsonaro, apenas para ficar nos presidentes, a história não só mostra, como escancara nossa predileção por populistas. E pouco interessa o lado ideológico do sujeito, desde que o pacto fundamental esteja embutido, melhor até subentendido, ainda no arcabouço dos compromissos de campanha: ser o pai da Nação. A mãe. O que for, desde que tudo. Candidato eterno a culpado eventual, enquanto não líder inimputável.

Ironia das ironias, este fascínio por personalidades carismáticas nunca se mostrou mais claro do que no período em que tivemos no poder um mandatário de inegável sucesso, porém de personalidade até certo ponto comedida. Pelas reformas implementadas em seus governos, mudando o País como as novas gerações não podem dimensionar, Fernando Henrique Cardoso mereceria homenagens País afora e em larga escala. Embora tenha sido o único presidente eleito e reeleito sem precisar disputar um segundo turno sequer, entretanto, jamais conquistou a adoração das massas.

O calendário marcava o início de 1973 quando O Bem-Amado fazia sua estreia na televisão. A obra de Dias Gomes se passava na fictícia Sucupira e explorava as desventuras protagonizadas por um prefeito demagogo e corrupto, de nome Odorico Paraguaçu. Em óbvia sátira ao País e ao momento político que atravessava, a novela exibia com franqueza e humor a história de um povo disposto a se submeter aos caprichos de um político incapaz de governar, contanto que ele assumisse o fardo de mantê-la alienada dos dissabores que a realidade impusesse.

Meio século se passou, é verdade, mas O Bem-Amado não poderia ser mais atual.

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JORNALISTA

Opinião por Mario Vitor Rodrigues

Jornalista