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Opinião|Judeus e cristãos em irmandade

Ao pisar no solo ensanguentado do campo de Auschwitz, o papa Francisco nos faz ver a importância de passar essa história adiante

Em novembro passado, o papa Francisco recebeu líderes judeus de mais de 50 países no Palácio Apostólico. Essa foi a primeira vez desde a fundação da Igreja Católica que aconteceu algo semelhante.

O objetivo dessa visita foi apresentar e assinar conjuntamente (católicos e judeus) o documento Kishreinu (do hebraico “nosso vínculo”), fortalecendo ainda mais os laços entre o mundo judaico-cristão.

No início deste ano, o papa emérito Bento XVI, que antecedeu a Francisco, faleceu. Tivemos a oportunidade de sermos recebidos por ele em maio de 2012.

Joseph Ratzinger, ainda seminarista, viu a ascensão do nazismo. Anos depois, já como papa, visitou o campo de Auschwitz. Lá, questionou-se onde estava Deus.

“Em um lugar como este, faltam palavras, resta apenas um silêncio aterrador, um grito voltado a Deus: por que toleraste tudo isso?”, disse Bento XVI em seu discurso.

Dez anos depois, Francisco trilhou os mesmos tortuosos caminhos da memória, pisando no solo ensanguentado de Auschwitz-Birkenau. Ao término dessa peregrinação, escreveu no livro de visitas: “Senhor, tenha piedade de seu povo. Senhor, perdão por tanta crueldade”.

É impossível a quem conheça o lugar não sair diferente. Fui em 2013, levando um grupo de jornalistas da América Latina, e o que vi nunca mais sairá de mim.

Observei as reações de cada um dos periodistas. Uns choravam copiosamente; outros faziam anotações para reproduzir tudo com riqueza de detalhes; outros tocavam as paredes e faziam orações. Comentavam ao olhar uma pilha de sapatos, montes de cabelos e retratos mostrando como damas, cavalheiros e pequenos viviam antes da hecatombe: “Meu Deus o que foi isso? Quantas crianças foram subtraídas de seus pais!”. Ouviam com extrema atenção histórias, todas verídicas, na voz de nosso monitor, Yoel Schvartz, que leva, anualmente, grupos de estudantes e adultos para a chamada Marcha da Vida, na Polônia, em que os participantes se defrontam com a vida que tinham os cidadãos antes da invasão nazista e terminam em uma caminhada silenciosa, na qual os brasileiros se juntam às delegações estrangeiras e percorrem cerca de três quilômetros até chegar a Birkenau para um ato central.

Eu e os jornalistas tivemos a oportunidade de esquadrinhar Auschwitz-Birkenau, o maior e mais temível campo de concentração, que, segundo o jornal Deutsche Welle, recebe mais de 2 milhões de pessoas vindas de todas as partes, um número expressivo, mesmo que com a pandemia tenha caído para 500 mil.

Há referências no mundo literário que nos aproximam do terror que era impingido nos campos, como experiências coordenadas pelo médico Josef Mengele, câmaras de gás, morte por desnutrição, doenças, tiros.

Primo Levi, em sua obra É Isto um Homem?, conta minuciosamente as agruras dos 11 meses em que esteve em Auschwitz. Chegou em um transporte que levava 650 pessoas; delas, 120 foram “escolhidas” para o trabalho escravo, as outras, conduzidas às câmaras de gás. E, dessa “conta”, apenas cinco sobreviveram. Definia aqueles que se salvaram da seguinte forma: tem aqueles que falam e os que calam.

O Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, identidade que recebeu ao chegar ao campo da morte aos 15 anos de número A-7713, foi considerado a grande “voz” dos sobreviventes. Dedicou-se à causas humanitárias e à educação do Holocausto, fundou o Museu do Holocausto nos EUA e o instituto que leva seu nome e que visa a intensificar sua luta em prol dos direitos humanos. Acreditava que aquele que nunca entrou em Auschwitz nunca conseguirá fazê-lo, e quem entrou jamais conseguirá sair.

O Vaticano, apesar de ser o menor país do mundo, é epicentro dos acontecimentos mundiais. Os olhos do planeta se voltam para lá, para ouvir a posição do papa diante dos mais variados temas. Francisco, com sua calma e voz doce, consegue com que seus apelos toquem o mais gélido coração. Alcança presidentes de países, devotos, a cúpula de seu ministério e nós, judeus, que sempre buscamos atender a seus desígnios da melhor forma possível. Essa nossa “conversa” é transformadora. A cada encontro, mais e mais nos admiramos com sua magnitude que, ainda como cardeal Jorge Mario Bergoglio, junto ao nosso diretor-executivo, Claudio Epelman, desenvolvia trabalhos na Argentina em conjunto, judeus e cristãos em irmandade. Como mensageiro da paz, ao pisar no solo ensanguentado desse que foi o sétimo campo criado, nos faz refletir e ver a importância e a necessidade de passar adiante essa história.

O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, celebrado em 27 de janeiro, data em que o campo de Auschwitz foi libertado pelo Exército Vermelho, é uma oportunidade de manter viva essa história, ao lado de combater todas as formas de violência contra o outro.

Devemos, apesar de todas as vicissitudes, nos atermos às palavras de Anne Frank, uma jovem cujo diário atravessou tempo e fronteiras, revelando, sob a ótica de uma menina, a guerra. Ela diz: “Apesar de tudo, ainda acredito na bondade do homem”. Eu também.

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ENGENHEIRO, É PRESIDENTE DO CONGRESSO JUDAICO LATINO-AMERICANO E DO MACCABI WORLD UNION

Opinião por Jack Terpins