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Opinião|O dilema dos Estados democráticos

A relação entre liberdade e autoridade deverá constituir o grande debate das sociedades democráticas nos próximos anos

Por Oscar Medeiros Filho

Há um aspecto que claramente diferencia prioridades políticas e sociais entre os países ocidentais e orientais e que advém de traços culturais. Grosso modo, podemos dizer que uma prioridade política entre as sociedades orientais é a ideia de harmonia social. Nelas, ordem e proteção dos valores societais constituem aspectos centrais demandados pela sociedade, mesmo que isso envolva, em contrapartida, a sujeição dos indivíduos ao estamento político. Esses são traços da cultura política predominante nos países situados entre o Oriente Médio e o extremo Oriente. Se há algo em comum entre Arábia Saudita, Irã, Rússia, China e Coreias é o fato de que nesses países a ideia de autoridade tem sido preservada.

Entre os países ocidentais, entretanto, predomina uma cultura política diferente. Fruto das revoluções modernas e das conquistas cidadãs dos últimos três séculos, buscou-se desenvolver aqui agendas políticas que conciliassem, na medida do possível, aspectos como justiça social e liberdade. O desenvolvimento deste último aspecto envolveu, para além de demandas sociais e políticas, conquistas civis que empoderaram o indivíduo diante da autoridade do Estado. Desta forma, podemos afirmar que entre os países ocidentais a ideia de emancipação do sujeito constitui a maior das prioridades políticas.

A liberdade, portanto, é uma conquista fundamental nos países ocidentais e base das sociedades democráticas. Esforços para a sua manutenção são dever das autoridades governamentais e responsabilidade de todos.

Nas últimas três décadas, entretanto, a ampliação exponencial dos fluxos globalizantes, impulsionada pela revolução técnico-científica-informacional, especialmente pelo aparecimento da internet e da adoção das redes sociais, tem gerado desafios para a relação entre autoridade e liberdade, e um paradoxo para os governos democráticos: os fluxos sociais tendem a exigir cada vez mais espaços de liberdade, o que, por sua vez, demandam capacidades maiores de regulação. Afinal, como nos lembra o filósofo político John Locke (1632-1704), “onde não há lei, não há liberdade”.

Em suma: não há liberdade sem autoridade. Entretanto, num mundo dominado por fluxos que ignoram fronteiras políticas, os Estados têm se mostrado vulneráveis e suas instituições, débeis. A questão central é que a solução para esse enfrentamento não se dará fora da política e de sua expressão territorial moderna: o Estado nacional. Por mais combalido que possa parecer, a civilização não foi capaz de apresentar alternativa melhor para a gestão política das sociedades, como locus do exercício da cidadania e das liberdades e contêiner garantidor da segurança de seus cidadãos.

As opções fora do Estado seriam desastrosas: 1) submeter-se a um governo mundial; ou 2) aceitar a fragmentação do Estado em milícias locais, o que poderia levar à guerra de todos contra todos já prevista por Hobbes. A existência de um Estado politicamente saudável, portanto, mostra-se condição imprescindível para a garantia das liberdades.

O desafio das sociedades democráticas, portanto, é encontrar soluções para enfrentar as ameaças deste mundo globalizado (ataques cibernéticos, terrorismo, desinformação, crise climática, etc.) mantendo seus propósitos de segurança e de conquistas cidadãs, especialmente a liberdade. Tal empreitada exigirá Estados fortes – não confundir com Estados grandes – e envolverá, necessariamente, a reafirmação da autoridade legitimamente constituída. Não se trata de subtrair a liberdade dos indivíduos, mas de encontrar soluções democráticas de regulação e responsabilização.

Caberá às sociedades democráticas encontrarem o ponto ideal que permita aos Estados manterem sua capacidade de regulação sem que isso prejudique o grau de liberdade conquistado pelos cidadãos. Afinal, é tênue a diferença entre a reafirmação da autoridade e o autoritarismo; e não se pode cair na tentação de emular modelos totalitários. Alguns esforços nesse sentido têm sido observados. A França, por exemplo, tem debatido o uso da Inteligência Artificial como instrumento de segurança para os Jogos Olímpicos que envolve a utilização de imagens oriundas de câmeras inteligentes. No Brasil, o debate em torno do Projeto de Lei n.º 2.630/20, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é outro exemplo.

A relação entre liberdade e autoridade deverá constituir o grande debate das sociedades democráticas nos próximos anos. Não será tarefa fácil, considerando especialmente a condição atual de sociedades ideologicamente polarizadas e socialmente fraturadas. Para piorar este quadro, os movimentos populistas tendem a mobilizar as populações menos por aquilo que as une e mais por aquilo que supostamente as separa. Mas uma sociedade democrática não pode perder a esperança na política como mecanismo de resolução de conflitos. Afinal, a política não se presta a criar o consenso, mas, antes, serve para administrar – de forma legítima e civilizada – o dissenso.

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CORONEL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO, DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE SEGURANÇA INTERNACIONAL NO UNICEUB

Opinião por Oscar Medeiros Filho

Coronel da reserva do Exército Brasileiro, doutor em Ciência Política pela USP, é professor de Segurança Internacional no Uniceub.