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Opinião|O pão francês é brasileiríssimo

Produzido até hoje de forma semiartesanal, o alimento mais popular do nosso café da manhã tem muito a ensinar sobre a importância dos circuitos econômicos locais

Por Ruy Altenfelder e Cláudia Buzzette Calais

Arriscamos dizer que você, leitor, leitora, enquanto passa os olhos por estas linhas, já comeu ao menos um pãozinho hoje. Acertamos o palpite? O pão, como o prato de arroz e feijão, é daqueles alimentos imprescindíveis para a dieta do brasileiro. Na maioria dos lares, o dia só começa de verdade depois de um pão com manteiga e uma boa xícara de café.

Mas nem sempre é óbvio o quanto de história, de cultura e de sabedoria podem estar contidas no simples ato de saborear um pãozinho fresco. A começar porque o mais brasileiro dos pães só existe graças à contribuição de imigrantes europeus. Com uma diversidade de nomes pelo Brasil, o nosso pãozinho do dia a dia – que ganhou o nome de pão francês em alguns Estados, pão de sal em outros, e um infinidade de outros nomes – é quase uma entidade e tem uma relação emocional com os brasileiros.

Apesar de a panificação no Brasil estar bastante vinculada às tradições portuguesas, foi com os migrantes italianos que essa cultura realmente se expandiu. Nos grandes centros urbanos, em fins do século 19, início do 20, as típicas padarias começaram a surgir. E esse surgimento, assim como em outros lugares do mundo, trouxe em seu rastro a necessidade de expansão da produção de trigo e uma mudança também nos hábitos dos brasileiros.

Há registros do cultivo de trigo no Brasil desde pelo menos o século 16, sobretudo na capitania de São Vicente – correspondente a parte do território atual do Estado de São Paulo. Mas as culturas predominantes no País durante séculos foram as da mandioca e do milho (transformado em fubá), a partir das quais confeccionávamos nossos pães, massas e bolos.

A lavoura de trigo ganhou força na virada do século 19, com a chegada em peso de imigrantes italianos e alemães, além de uma série de incentivos do Estado para que a triticultura se estabelecesse no País e conseguisse fazer frente ao trigo importado dos Estados Unidos. Os Estados mais beneficiados foram o Paraná e o Rio Grande do Sul, que, diga-se de passagem, permanecem até hoje como líderes nacionais na produção de trigo.

A popularização da farinha de trigo abriu caminho para um novo tipo de panificação e permitiu a invenção do pãozinho que convencionamos chamar de “francês”. Esta é outra história curiosa: no início do século 20, brasileiros abastados que iam à França voltavam encantados com os pães tipo baguete, de casca dourada e miolo branco, inexistentes no Brasil.

Eles pediam para que seus cozinheiros tentassem replicar a receita, o que acabou dando origem a um novo tipo de pão, diferente do original europeu, pois leva gordura e açúcar na massa antes de ir ao forno. Mesmo assim, essa espécie de minibaguete, criação genuína dos padeiros brasileiros, não escapou da alcunha de “francês”. A receita do pãozinho mais consumido hoje no Brasil é, portanto, uma adaptação encomendada pelos brasileiros mais abastados que voltavam de viagem da Europa, em especial da França, e desejavam manter essa iguaria em sua culinária.

O pão francês é até hoje o produto com maior saída nas padarias brasileiras, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria da Panificação e Confeitaria (Abip). Ele desempenha, portanto, papel crucial na sustentação de um setor que engloba quase 90 mil estabelecimentos em todo o País e emprega diretamente 920 mil pessoas – os dados, aqui, são do Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo (Sampapão).

Esse talvez seja um dos aspectos mais interessantes da cultura ligada ao consumo do pão francês. Sua produção relativamente tradicional, de raízes profundas, ilumina um caminho promissor justamente para o futuro das cadeias produtivas brasileiras.

À primeira vista, essa pode parecer uma relação paradoxal, mas é na valorização dos comércios locais e dos circuitos econômicos regionais – exemplificados aqui pelas padarias de bairro – que está uma das chaves para uma economia mais justa e sustentável, uma economia que respeita e contempla as particularidades culturais de cada região, baseando-se em negócios que produzem desenvolvimento para toda a comunidade ao redor.

Além disso, o setor de panificação e confeitaria requer profissionais especializados, o que significa dar aos jovens uma oportunidade de ingressar no mercado de trabalho com boa remuneração e com oportunidades reais de crescimento profissional. Só em São Paulo, segundo o Sampapão, existem 10 mil vagas abertas.

De acordo com o mesmo sindicato, são cerca de 25 milhões de pãezinhos vendidos diariamente no Estado de São Paulo. Com cerca de 22 mil padarias, o Estado conta com aproximadamente 30% do mercado de panificação do País. Estima-se que sejam aproximadamente 6 mil padarias apenas na Grande São Paulo.

Por essas e outras, o pão francês é muito mais do que um alimento delicioso, ideal para começar bem o dia. Ele é parte inextricável da cultura popular brasileira, materialização de uma história rica e diversa. Ele é, também, protagonista de um circuito econômico com o qual temos muito a aprender, se quisermos construir um futuro mais próspero e sustentável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADO, PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS; E DIRETORA EXECUTIVA DA FUNDAÇÃO BUNGE

Opinião por Ruy Altenfelder e Cláudia Buzzette Calais
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