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Opinião|O passado que nos assombra: o problema do julgamento em História

Transpor sentimentos, valores éticos e perspectivas de uma época para outra violenta os protocolos do trabalho historiográfico

Torna-se cada vez mais comum em nossa sociedade olhar para o passado e julgá-lo a partir de horizontes éticos próprios da atualidade. Constatados os seus “erros” e “desvios”, impõe-se a tarefa de consertá-lo, pedir desculpas e desagravá-lo.

Sem dúvida, trata-se de uma atitude simpática que pacifica a consciência pessoal e social. Mas seria um procedimento correto sob o ponto de vista epistemológico? A História comporta juízo de valor sobre os acontecimentos passados dependentes de um contexto específico?

O passado foi o que foi ou o que se pretende que foi a partir do conhecimento historiográfico. Não há como consertá-lo, a não ser nos filmes e nas séries televisivas que tornam possível a volta no tempo. O remake de Quantum Leap está aí para confirmá-lo.

É muito comum a atitude de julgar o passado a partir dos valores do presente. Cada sociedade, no entanto, se formou e se desenvolveu a partir de determinada cultura que normaliza determinadas situações e costumes.

Paul Veyne, importante historiador francês do século 20, no livro Como se escreve a História, afirma que, “para o historiador, o único problema é saber se o que ele considera tolice o era também aos olhos de seus contemporâneos. O historiador se limitará a constatar que as pessoas da época julgavam desta ou daquela maneira; ele pode até acrescentar que nós julgamos diferente. Nunca diz que esses valores não eram bons e que nós os renegamos com razão”.

Outro grande historiador francês, Marc Bloch, no livro Introdução à História, afirma que: “Uma palavra, em suma, domina e ilumina os nossos estudos: compreender. É tão cômodo gritar à forca! Quem difere de nós passa, quase necessariamente, por mau. A História, se renunciar ela mesma aos falsos ares de arcanjo, deve ajudar-nos a curar dessa mania (julgar). Ela é uma vasta experiência da diversidade humana, um longo encontro dos homens”.

Em alguns casos, a revisão do passado causa controvérsia e tentativa de destruição ou remoção de objetos artísticos. Alguns exemplos no Brasil: os livros de Monteiro Lobato, o significado do 13 de maio de 1888, o bandeirantismo e seus ícones, o significado histórico de Tiradentes, o papel de instituições longevas em tempos passados (casos da Igreja e do Banco do Brasil), a luta pela remoção de estátuas e telas de espaços públicos (caso da estátua de Borba Gato em São Paulo e da tela Alegoria da Lei Áurea na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A História não é um conjunto de fatos que se oferece ao observador sem intermediações. Em tempos convulsos e polarizados, sua interpretação facilmente descamba para servir a objetivos políticos e ideológicos. Há muitos exemplos de transformações históricas com operações de desconstrução e ressignificação de personalidades e eventos que são tributárias de demandas políticas estranhas ao conhecimento científico do passado.

O aparecimento de nova documentação, o olhar alternativo para um evento e para os documentos existentes, o surgimento de novos conceitos e perspectivas de análise fazem parte do ofício do historiador. Mas transpor sentimentos, valores éticos e perspectivas de uma época para outra violenta os protocolos do trabalho historiográfico.

O tema da escravidão, a título de exemplo, se presta facilmente a essa confusão por causa da sua alta sensibilidade social. No caso do Brasil, a escravidão foi importante até o século 19. Todas as instituições de Estado, como a Câmara, o Senado, a monarquia, o Supremo Tribunal de Justiça e as Forças de Segurança, com ela conviveram. Também as instituições civis e religiosas, como os bancos e a Igreja. O Banco do Brasil, objeto da investida do Ministério Público Federal há pouco tempo, não tinha como escapar ao que era normal na sociedade da época: a captação de recursos oriundos da economia escravista e a participação societária de agentes do escravismo.

Nos séculos 18 e 19, as políticas da Corte portuguesa e da monarquia brasileira incentivaram a doação de terras a quem solicitasse e se mostrasse capaz de torná-las produtivas. Muitos adquiriram grandes extensões de terra e se tornaram poderosos econômica e socialmente, como foram os casos do Barão de Guaraciaba e do Visconde do Rio Preto (dois mineiros escravocratas ousados), entre outros, confiados nos horizontes jurídicos e na política das instituições do Estado à época. Deverão ser condenados hoje?

O passado não pode ser mudado. As suas consequências sociais nefastas, no entanto, podem e devem ser combatidas. Os ideais de liberdade, igualdade, inclusão e respeito à diversidade são valores do nosso tempo que devem ser promovidos por políticas de Estado e assumidos por toda a sociedade como forma de criar um país mais igualitário e justo. O que não pode é estabelecer um juízo universal que profere veredictos e estabelece penalidades que as sociedades antigas teriam dificuldade em abrigar. Compreender o passado em sua singularidade é a única forma de ser justo com a História, sempre pronta em desmanchar no ar até o que parece sólido.

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DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Opinião por Isaías Pascoal

Doutor em Ciências Sociais

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