Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Portaria do MEC e desarmonia entre os Poderes

Portaria do MEC que anula processos de cursos de Medicina é desserviço à sociedade e representa um enfrentamento do Executivo a decisão do Judiciário

Por Luciana Lossio

Centenas de instituições de ensino de todo o País que aguardam autorização do Ministério da Educação (MEC) para a abertura de seus cursos de Medicina vivem uma situação de total insegurança jurídica desde a publicação da portaria Seres/MEC n.º 397/2023, no dia 23 de outubro.

Isso porque a portaria ignora o julgamento sobre a modulação dos efeitos para a abertura de cursos a partir da Lei do Mais Médicos e cria um outro entendimento sobre o assunto em meio ao julgamento que corre no Supremo Tribunal Federal (STF). Essa portaria é um descumprimento claro, pelo governo federal, de uma decisão do Judiciário e induz o leitor a erro ao afirmar que está cumprindo uma decisão do Supremo quando, na verdade, está a descumpri-la.

O texto do MEC traz novos requisitos que não estavam previstos na decisão (de 22 de junho) do ministro Gilmar Mendes, que autorizava a continuidade dos processos que já tivessem ultrapassado a fase inicial de documentação. Agora, esses processos estão sendo sumariamente indeferidos, o que descumpre a decisão liminar do Supremo, vigente atualmente. É uma portaria desarrazoada, que gera desnecessário enfrentamento à autoridade do Poder Judiciário, até mesmo por estarmos no meio do julgamento pelo plenário do Supremo, que foi paralisado em razão do voto-vista do ministro André Mendonça. Atualmente, o julgamento está empatado em 2 a 2, com o ministro Luis Fux concordando com o relator Gilmar Mendes e com Edson Fachin e Rosa Weber votando por uma suspensão dos processos que não chegaram à fase de publicação em portaria oficial.

A portaria trouxe consequências imediatas, como o cancelamento de pelo menos 60 avaliações de cursos de Medicina, que já estavam agendadas com as autoridades do MEC, inclusive no dia de publicação da portaria, 23 de outubro. Essa decisão do MEC já foi comunicada ao Supremo e estamos aguardando uma decisão do tribunal. A situação é muito delicada, porque a portaria instaura uma desarmonia entre os Poderes. Além do descumprimento da liminar do ministro Gilmar Mendes, também há inúmeras decisões de juízes de primeiro grau e de Tribunais Regionais Federais, desde 2019, que permitiram a continuidade dos processos dessas instituições. São várias decisões judiciais sendo descumpridas. É um desserviço a uma proteção social fundamental, que é a saúde pública.

Um levantamento da Advocacia-Geral da União (AGU) apontou que existem 223 pedidos judiciais de autorizações de novos cursos de Medicina para 32.051 novas vagas, além de 22 solicitações para ampliação do volume de vagas em cursos já existentes. A média de investimento para cada novo curso é de R$ 8 milhões a R$ 10 milhões, o que traz um impacto total de, pelo menos, R$ 960 milhões. Esse é um dinheiro que já foi investido pelas universidades e que será totalmente perdido com as anulações sumárias dos processos, seguindo os parâmetros da portaria.

As instituições que já realizaram investimentos humanos e financeiros, com a concordância do poder público – Judiciário e Executivo (MEC) –, estão sendo prejudicadas, juntamente com a sociedade e o destinatário final deste serviço público, que é o cidadão brasileiro. São instituições que já têm corpo docente contratado, estrutura com laboratórios, sala de aula, enfim, tudo pronto. A portaria desconsidera por completo todos os investimentos humanos e financeiros já realizados. A portaria ignora solenemente a execução de uma política pública de saúde.

Agora, é preciso esperar um caminho possível que pode ser tomado pelo Supremo: o de suspender a aplicação da portaria até a conclusão do julgamento. Infelizmente, não há uma previsão exata de quando isso pode acontecer. É possível que tenhamos uma decisão individual ou que o ministro relator, Gilmar Mendes, proponha algo ao plenário sobre esta dramática questão. O que se espera é que o Judiciário tome uma decisão razoável e que pense de maneira ampla no bem-estar e na promoção da saúde de toda a sociedade brasileira.

*

ADVOGADA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS MANTENEDORAS DE FACULDADES (ABRAFI), FOI MINISTRA DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE)

Opinião por Luciana Lossio