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Opinião|Saúde às avessas

Ampliar a gama de serviços que as farmácias oferecem, sem obedecer a alguns critérios, é nocivo ao sistema de saúde e à população

Por Francisco Balestrin e Dirceu Barbano

A música Fora da Ordem, de Caetano Veloso, é recheada de contradições. Um dos versos (“nas ruínas de uma escola em construção”) sugere que no Brasil tudo acaba antes mesmo de começar. As artes nos apresentam outras formas de enxergar a vida e contribuem para uma visão mais crítica da sociedade. Por isso também são propulsoras de transformações.

Neste ano, quando comemoramos os 35 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), é importante avaliarmos os pontos positivos e críticos do sistema, mas com a compreensão de que ele ainda não está totalmente implementado. Essa cautela é importante para que não arruinemos o que ainda está sendo construído, afinal são imensos os desafios para torná-lo resolutivo num país com as dimensões territoriais do Brasil e sua diversidade cultural e econômica.

Apesar dos inúmeros avanços e melhorias dos indicadores de saúde nas últimas três décadas e meia, como a diminuição das mortalidades materna e infantil e o aumento da expectativa de vida, os usuários do SUS ainda encontram dificuldades de acesso, a Atenção Primária em Saúde (APS) não é resolutiva, não há integração entre este nível assistencial e as média e alta complexidades, entre outros entraves.

Pesquisa de opinião pública recente realizada pelo Sindicato de Hospitais, Clínicas, Laboratórios e Estabelecimentos de Saúde do Estado de São Paulo (SindHosp) mostrou que 83% da população paulista já encontrou alguma dificuldade quando precisou usar o SUS. A maioria está relacionada ao tempo, com longas filas de espera para exames, cirurgias e outros procedimentos. O bom funcionamento da APS é fundamental para a promoção da saúde da população e resolve 85% das demandas, segundo o Ministério da Saúde. Porém este gargalo no acesso e no tempo da assistência não pode servir de pretexto para soluções que ferem diretamente questões éticas e legais.

Em recente entrevista ao Estadão, a presidente do conselho de administração de uma grande rede de farmácias anunciou a criação de consultórios médicos dentro ou próximo desses estabelecimentos, sob o argumento de melhorar o acesso e ajudar de forma mais ampla na saúde dos “clientes”. Trata-se de uma verticalização na cadeia econômica que pode trazer consequências extremamente negativas.

A primeira delas é o conflito ético existente neste modelo, já que a empresa que vende medicamentos passaria a contratar médicos para atender seus “clientes” e prescrever os próprios produtos. Também temos de considerar o interesse da indústria farmacêutica, que pode se valer de estratégias de propaganda para influenciar diretamente a venda de determinados itens dentro das farmácias, o que pode ser lesivo aos pacientes. Outro aspecto relevante é que o setor de saúde já entendeu a importância da troca de informações e da formação de uma Rede Nacional de Dados, na qual o usuário e os profissionais responsáveis pelo seu tratamento possam ter acesso ao prontuário digital. Os dados dos atendimentos realizados nas farmácias não seriam abrangidos pelo sistema de saúde, contribuindo para outro fator que precisa ser combatido: o desperdício.

Mais importante que todas essas argumentações é o fato de a legislação brasileira vedar a vinculação de consultórios ou clínicas médicas com farmácias. Em 2014, a Lei n.º 13.021 alterou o conceito de farmácia, caracterizando-a como estabelecimento de saúde (até então, era tida como estabelecimento comercial). A preocupação, na época, era fazer com que elas fossem mais integradas ao sistema de saúde e pudessem oferecer serviços cuja prestação fosse suportada pela estrutura dos estabelecimentos e dos profissionais que neles atuam, no caso, os farmacêuticos. A lei extinguiu dúvidas sobre a possibilidade de a farmácia prestar serviços farmacêuticos, que são definidos pelo Conselho Federal de Farmácia. Estes estão relacionados com a dispensação qualificada e o monitoramento das terapias farmacêuticas, sempre no sentido de tornar o uso de medicamentos mais racional, seguro e efetivo.

Para esse monitoramento farmacoterapêutico passaram a ser admitidos alguns serviços, como a consulta farmacêutica para a elaboração da estratégia de controle (e nunca para diagnóstico); a realização de exames bioquímicos para verificação de parâmetros (glicose, colesterol, triglicerídeos, etc.); aferição de pressão arterial; além da administração de medicamentos injetáveis, incluindo vacinas (depois da autorização da Anvisa), e outros procedimentos considerados coerentes com a formação do farmacêutico.

Hoje as farmácias são, de fato, muito mais que simples locais de comercialização de medicamentos e outros produtos. Mas ampliar a gama de serviços que oferecem, sem obedecer a alguns critérios, é nocivo ao sistema de saúde e à população. Para a sociedade e profissionais que vivenciam o dia a dia do SUS, é inadmissível que o médico que prescreve e as prateleiras que armazenam os medicamentos estejam sob o mesmo teto. Para reflexão, o professor Mario Sergio Cortella tem uma frase que contextualiza bem esta questão: “É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a consciência e começarmos a achar que tudo é normal”.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO, PRESIDENTE DO SINDHOSP, EX-PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO MUNDIAL DE HOSPITAIS; E FARMACÊUTICO, DIRETOR TÉCNICO DO SINDHOSP E EX-PRESIDENTE DA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA)

Opinião por Francisco Balestrin e Dirceu Barbano