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Opinião|Uma miragem

A ANTT vai ou não cumprir a lei e autorizar concorrência no transporte? Prever que novos operadores possam entrar em mercados sem passageiros é o mesmo que dar autorização para plantar em solo infértil

“A história se repete sempre, ao menos duas vezes. A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” A frase célebre de Karl Marx não poderia ser mais apropriada para o setor de transporte rodoviário de passageiros no Brasil. O setor está repetindo exatamente a mesma história já vista várias vezes nas últimas décadas e que conta sempre com o mesmo enredo: a eterna prorrogação de um estado de letargia no cumprimento da lei pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em claro prejuízo aos mais de 20 milhões de usuários dos serviços de ônibus interestaduais.

A palavra farsa descreve bem a proposta de abertura do setor de transporte rodoviário de passageiros que foi apresentada pela ANTT em audiência pública ocorrida em 1.º de agosto de 2023, em razão das premissas divulgadas e dos resultados efetivamente almejados – diametralmente opostos às premissas. Na ocasião, a ANTT apresentou, pela terceira vez em apenas dois anos, um projeto de “novo marco regulatório” que supostamente teria como objetivo atualizar as regras setoriais e dar cumprimento à legislação atual, que estabelece expressamente a obrigatoriedade de a ANTT autorizar as empresas de transporte interestadual a operar em ambiente de livre e aberta competição.

A pretexto de atualizar as regras setoriais, a ANTT pretende não apenas limitar o ambiente de competição, como assegurar exclusividade para poucos players nos mercados de maior demanda e que, portanto, são não só os mais rentáveis, mas também os mais relevantes para uma parcela significativa da população. A proposta tem como pretexto garantir uma pretensa segurança jurídica e amortização de investimentos aos operadores atuais. Ocorre que a almejada exclusividade para amortizar investimentos pressupõe que tenha havido licitação prévia e que tenham sido celebrados contratos delimitando prazo e regras, condições essas que não se aplicam para mercados autorizados, que devem ser submetidos à livre e aberta competição.

Assim, o regramento apresentado pela ANTT prevê tanto o estabelecimento de vagas nos mercados mais rentáveis como também a possibilidade de proibição integral à entrada de novos operadores. A proposta ainda prevê que mercados mais disputados que forem abertos à competição têm de passar por um processo seletivo público, que seria similar a uma licitação, para o ingresso de novos operadores. Paradoxalmente, tal processo seletivo não se aplicaria às empresas que já operam hoje nos mercados, mas apenas às novas operadoras.

O resultado dessas regras é que somente será permitido o livre ingresso de novos operadores em rotas que historicamente nunca foram economicamente viáveis, justamente porque não dão retorno aos operadores e, sozinhas, não viabilizam a operação dos serviços de transporte de passageiros. Prever que novos operadores possam entrar em mercados sem passageiros é o mesmo que dar autorização para plantar em solo infértil. Trata-se de uma autorização vazia, que, de um lado, não viabiliza a expansão e o ingresso de novos operadores e, de outro, pouco ou nada acrescentará para a grande maioria dos usuários, uma vez que não haverá incentivos à atração de capital, à redução de preços e à melhoria geral da qualidade dos serviços, que poderiam ter efeitos realmente benéficos para a sociedade.

Por sua vez, proibir a entrada de novas empresas nos mercados mais disputados sob a justificativa de que isso poderia gerar o colapso das empresas em razão de uma suposta concorrência ruinosa não passa de um argumento vazio, que não foi testado e não está comprovado. Ao contrário, entre 2019 e 2021, como resultado de deliberação da antiga diretoria da agência, de n.º 955/2019, algumas empresas conseguiram ingressar nos mercados, até que eles fossem novamente fechados por ordem do Tribunal de Contas da União (TCU). Eis que não se tem notícia de rupturas ou colapsos das antigas incumbentes, mas sim da redução de preços nos poucos mercados contemplados com a ampliação da concorrência.

São, por isso mesmo, falsas a afirmativas de que autorizar livremente mercados significa autorizar o caos e mesmo renunciar ao controle e fiscalização da ANTT – discurso muito repetido pelas próprias incumbentes atuais.

As novas empresas continuarão obrigadas a apresentar as rotas, pontos de embarque e desembarque, terminais, pontos de apoio, comprovando o preenchimento de diversos requisitos que, por si sós, já constituem barreiras regulatórias razoáveis à entrada e garantem que amadores e oportunistas não serão bem-vindos.

Tamanha é a controvérsia da proposta levada a debate na audiência pública que ela foi criticada pelo próprio corpo técnico da ANTT. Em posicionamento técnico preciso, a Coordenação de Análise Regulatória do Transporte de Passageiros (Coarp) propôs eliminar diversas das barreiras regulatórias à entrada impostas pelo marco regulatório que foi proposto. Infelizmente, a Superintendência da ANTT, ao invés de levar a debate as considerações do corpo técnico, silenciou o órgão, colocando o processo sob sigilo e ameaçando demitir os servidores, numa sinalização infeliz do que está por vir e de que o debate proposto não passa de uma ilusão.

Como se tudo isso não bastasse, a ANTT quer aprovar o polêmico marco no apagar das luzes de 2023, sem maiores debates com a sociedade. A diretoria da agência deixou para pautar a aprovação da regulamentação no final de dezembro, e só há uma última reunião: a que será realizada em 21 de dezembro, quando os olhos da sociedade já estão voltados para o Natal e as festas de fim de ano.

Portanto, a sociedade deve ficar atenta e os órgãos de controle, em alerta. A proposta da ANTT para a abertura de mercado não passa de uma miragem, que engana os olhos menos atentos e que esconde o mesmo enredo de duas décadas atrás: a manutenção do status quo e a garantia de exclusividade a empresas que nunca venceram uma licitação para prestar serviços públicos de transporte rodoviário interestadual de passageiros. A proibição ao ingresso de novos concorrentes, em pleno regime de autorização, não apenas é ilegal, como impede a oxigenação de um setor marcado por assimetria de informação, favoritismos, indicações e interferências políticas.

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MESTRE EM DIREITO DA REGULAÇÃO PELA FGV DO RJ, GRADUADO EM DIREITO PELA PUC-RJ, PESQUISA E ATUA NA ÁREA DE DIREITO, COM FOCO EM DIREITO ADMINISTRATIVO, REGULATÓRIO, INFRAESTRUTURA E ENERGIA

Opinião por Alexandre Ortigão Sampaio Buarque Schiller