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Opinião|Viúvas da guerra fria

Parte da esquerda lamenta o sofrimento de Gaza, aceita o sofrimento de Israel e acaba entrando de bucha de canhão no velório errado

O fim da guerra fria, precipitado pelo colapso da União Soviética, há 32 anos, deixou viúvas na esquerda mundial e no Brasil. Explicável: para muitos, era confortável escolher o mocinho URSS contra o bandido Estados Unidos.

Na época, em nome dessa polarização, centenas de partidos e milhões de ativistas relativizaram ações de ditadores sanguinários como Josef Stalin, na URSS, e Mao Zedong, na China, renunciando à razão de existência da esquerda: buscar uma vida decente para todos.

Com a falência do socialismo soviet style, o neoliberalismo, que parecia triunfante, mostrou ser incapaz de resolver os grandes problemas sociais da humanidade. E uma nova polarização espalhou-se por um mundo sem trabalho para todos, com legiões de imigrantes famélicos e o desastre ambiental anunciado.

Agora, de um lado está uma ultradireita feroz, que, manipulando as mídias digitais e a bordo do discurso da xenofobia, do retrocesso comportamental e do fundamentalismo religioso, chegou ao poder, por exemplo, nos Estados Unidos, com Donald Trump; no Brasil, com Jair Bolsonaro; e em Israel, com Binyamin Netanyahu e Itamar Ben-Gvir.

Trata-se, então, de uma polarização entre barbárie e civilização; entre teocracias e Estados laicos; entre democracia e tirania. Ainda assim, algumas viúvas tentam ressuscitar a lógica da guerra fria. Há quem tenha saudado a vitória do Taleban no Afeganistão ou confunda Vladimir Putin com Vladimir Lenin e defenda a invasão russa na Ucrânia em nome da “luta contra o imperialismo dos Estados Unidos”.

Enquanto isso, pragmáticos, diversos países aproveitam o vácuo gerado pelo fim da bipolaridade Estados Unidos x URSS para se estabelecer como potências regionais, utilizando o peso econômico, a diplomacia ou a força bruta.

A China, por exemplo, expandiu seus interesses econômicos por todo o mundo. No Oriente Médio, o Irã vem construindo um sólido arco xiita de aliados, que inclui a Síria, o Iêmen, o Iraque e o Hezbollah (controlador de fato do poder no Líbano), e que foi além do cisma islâmico, aproximando-se dos sunitas do Hamas, na Palestina.

Como reação, a Casa Branca e Israel elaboraram um arco sunita, que selasse a paz com os israelenses. Vários Estados toparam a aposta: Emirados Árabes, Bahrein e o golpe final viria com a paz entre Arábia Saudita e Israel, isolando o regime dos aiatolás. Em troca, a Arábia Saudita ganharia sua bomba atômica, uma garantia definitiva contra as ameaças do Irã.

Antes que isso acontecesse, Teerã, impulsionada pelo imperialismo russo, acionou seus peões, o que deu início ao atual conflito entre Israel e o Hamas – e ao brotar de uma onda de viúvas fuçando em busca dos mocinhos e bandidos.

No Oriente Médio, quem for procurar mocinhos e bandidos quebra a cara. O Hamas massacrou, no dia 7 de outubro passado, cerca de 1.400 pessoas em Israel, a maioria civis, em grande medida graças à desordem no exército e nos serviços de inteligência, mais preocupados com proteger fanáticos de extrema direita e seus assentamentos na Cisjordânia ocupada.

O ataque do Hamas tem nome: terrorismo. Mas a reação desproporcional de Israel, um banho de sangue, também deu um banho de popularidade no grupo islâmico, cujo domínio totalitário sobre Gaza vinha sendo bastante questionado. Isso está muito longe de transformá-lo num “movimento de libertação nacional”. Se fosse, será que praticaria o pogrom de 7 de outubro, sabendo que a reação israelense seria destruidora para a população de Gaza?

Israel, de sua parte, promete destruir o Hamas (o que não conseguiu fazer com a Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, em 1982, no Líbano). O problema é que o Hamas está entrincheirado entre a população civil. Mesmo com a evacuação de centenas de milhares de civis rumo ao sul, os ataques israelenses já mataram mais de 8 mil pessoas e o bloqueio econômico, intermitente desde 2005 e, agora, completo, vai transformando Gaza num mar de fogo.

Essa radicalização é o que quer o Irã. E, também, a extrema direita israelense, pronta para propor a anexação de vez da Cisjordânia e a expulsão de centenas de milhares de palestinos.

É preciso inverter essa lógica e enxergar o cenário pelo lado das vítimas. Todas. Exigir a devolução dos mais de 230 reféns sequestrados pelo Hamas e o fim dos bombardeios a Gaza e dos foguetes que o grupo lança contra Israel.

Não há solução mágica para problemas tão complexos. Mas, certamente, não existe solução militar. É preciso preservar a vida em Gaza, da população de Israel e de seus cidadãos sequestrados, abrindo espaço para a retomada de negociações que levem ao fim da ocupação e à convivência entre Israel e o futuro Estado Palestino.

É difícil? Sem dúvida. Mas a alternativa é muito mais complicada e perigosa: o alastramento da guerra, com consequências inimagináveis. E com a conivência de parte da esquerda, viúva da guerra fria, que lamenta o sofrimento de Gaza, aceita o de Israel e acaba entrando de bucha de canhão no velório errado.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, JORNALISTA E ESCRITOR; FISIOTERAPEUTA E COORDENADOR DO GRUPO JUDEUS PELA DEMOCRACIA, DE SÃO PAULO; E ADVOGADA

Opinião por Jayme Brener, Marcelo Semiatzh e Yonah Akerman Zimerman