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Opinião|A glória que se liquefaz

convidado

Nós, viventes em 2023, conquistamos um universo inimaginável para os que viviam em 1923. Conseguimos manter íntegros, como se estivessem vivos, nossos ícones nas mais diversas áreas. Podemos ouvir Elis Regina a cantar junto com Maria Rita. Nat King Cole com Natalie. Hologramas nos trazem Frank Sinatra, Gal Costa, Tom Jobim, Vinicius, João Gilberto.

José Renato Nalini Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Podemos ouvir Martin Luther King no célebre discurso “Eu tenho um sonho” e também John Lennon em “Imagine”. Que tesouro à disposição de quem tiver interesse.

Já os grandes do passado são insuscetíveis dessa preservação. Principalmente os tribunos. Aqueles que escreveram sua produção, como o Padre Antônio Vieira, Mont’Alverne, Rui Barbosa e poucos outros, obtiveram a projeção de sua glória para além dos que os ouviram.

Um notável orador paulista e paulistano foi o famoso Padre Chico. Não se registrou sua voz. Perdeu-se, na noite dos tempos, o fulgor de sua eloquência. Quem ouviu, já está com ele no mistério. Quem não o ouviu, nunca mais, como quer o corvo de Edgar Alan Poe.

Ficam as lendas e as estórias. Como Padre Chico era franco, sociável, guloso e pilhérico, o folclore guardou bastante coisa sobre ele.

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Quando morava no Seminário de São Paulo, cujas ruínas ainda existem na Avenida Tiradentes, ao lado da Igreja de São Cristóvão, outro residente, o padre Montenegro, ganhara um frasco de licor. Quis partilhar com os colegas para irem à noite à sua cela, para provarem do álcool açucarado. Diminuta a libação destinada a cada um. Pequeno frasco para tantos...

Quando o Padre Chico foi usufruir dessa liberalidade, surge no quarto, de inopino, o reitor, Frei Fermino. Pilha o Padre Chico em flagrante delito, não com a boca na botija, mas com a botija na mão.

Padre Chico não perde a calma. Despeja pequena quantidade do licor em suas mãos e com elas besunta a testa do Padre Montenegro. Passou-se por enfermeiro, a socorrer o companheiro no infortúnio da dor de cabeça.

Outra qualidade do Padre Chico era sua tolerância religiosa, em tempos de inexistente ecumenismo. De sua roda de íntimos faziam parte, não só pessoas de seitas diferentes, como até ateus. Basta lembrar os nomes de Júlio Ribeiro, Pedro Lessa e Sílvio de Almeida. Um protestante, um agnóstico um discípulo de Auguste Comte.

Mas o episódio mais curioso na história do Padre Chico ocorreu com o bispo Dom José Camargo de Barros (1858-1906). A mitra de São Paulo vencera uma demanda contra o governo do Estado. Isso implicava em aumento do patrimônio da diocese. Mas a liquidação efetiva do pleito dependia de um documento guardado no arquivo particular de Dom José. O bispo estava no estrangeiro e, prestes a retornar ao Brasil, falece num naufrágio no Mediterrâneo.

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Padre Chico assume o governo da sede vacante e busca, rebusca e remexe os arquivos, à procura do documento. Examina livros, abre gavetas. Esvazia armários. Esquadrinha tudo, sem qualquer proveito. Não encontra o papel, imprescindível à definição da lide.

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Acabrunhado com o caso, quando atravessa o Largo de São Bento, vê um clérigo que o chama. Dirige-se ao colega. Padre Chico transfigura-se e beija a mão do sacerdote. Este desaparece e o Padre Chico, pálido e trêmulo, conta a seus colegas que o sacerdote era o próprio bispo Dom José, que se afogara nas proximidades da Espanha e que viera indicar o paradeiro do documento extraviado. Com efeito, no lugar indicado, encontra aquilo que se extenuara em procurar.

Além da oratória, Padre Chico era um cultivador da verdadeira caridade. Não raro despia-se de sua capa em favor de quem padecia frio. Certa feita, alguém que encomendara missa deixa um envelope fechado para ele. Sem verificar o que continha, entregou o envelope, assim como recebera, a uma velhinha que lhe pediu esmola.

Quando já estava em casa, Padre Chico vê a velhinha voltar. Queria devolver ao vigário a quantia recebida, excessivamente demasiada para uma esmola.

Padre Chico expirou em sua casinha, agora junto ao convento da Luz. Ao fazerem o arrolamento de seus bens, não encontraram dinheiro. Havia, sim, muitos pedidos de emprego e de recomendação. Algumas cédulas esquecidas dentro de livros, a evidenciar o seu desamor ao metal, fonte de quase todos os males dos homens.

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O Instituto para Cegos “Padre Chico” é a maneira pela qual ele continua a ser lembrado.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

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