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Opinião|As Forças Armadas não são poder moderador

convidado

Observo o caput do artigo 142 da Constituição:

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Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O PDT propôs, em junho de 2020, ação que questiona a LC 97/99. A lei regulamentou o art. 142 da CF, relacionada à atuação das Forças Armadas.

O partido questionou a atuação das Forças Armadas como um poder moderador e a “autoridade suprema” do Presidente da República para utilizar as forças militares e pediu ao STF a interpretação sobre o dispositivo constitucional, como lembrou o portal Migalhas, em 31 de março de 2024, em reportagem sobre o tema.

Como nos revelou o portal da revista Exame, em 29 de março de 2024, começou um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que trata sobre os limites constitucionais da atuação das Forças Armadas. O primeiro voto registrado no processo foi o do ministro relator, Luiz Fux, que fez considerações sobre os três pontos principais levantados na discussão.

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São eles: 1) quando devem ser aplicadas as Garantias da Lei e da Ordem (GLOs); 2) como deve ser interpretado o artigo 142 da Constituição, que confere às Forças Armadas a “garantia dos poderes constitucionais”; e 3) se as Forças Armadas podem ser consideradas como uma espécie de “Poder Moderador” em relação aos outros Poderes.

Ainda ali se disse que, na interpretação do ministro Fux, o dispositivo não permite “qualquer interpretação que admita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um Poder contra o outro” nem uma ruptura do sistema democrático. Essa visão distorcida do artigo 142 passou a ser defendida por grupos de bolsonaristas que não aceitavam a derrota eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro e alegavam, sem provas, fraude nas urnas no fim de 2022. Eles pediam que as Forças Armadas fizessem uma intervenção militar para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O artigo 142 diz que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Em seu voto, o ministro do Supremo lembra que a autoridade do Presidente da República é “suprema” em relação às demais autoridades militares, “mas não o é em relação à ordem constitucional”. Ou seja, o presidente não pode acionar as Forças Armadas para agir contra a separação e harmonia entre os Poderes.

“O que se busca é reafirmar cláusula elementar do Estado Democrático de Direito: a supremacia da Constituição sobre todos os cidadãos, inclusive os agentes estatais, como mecanismo de coordenação, de estabilização e de racionalização do exercício do poder político no ambiente naturalmente competitivo de uma democracia plural”, afirmou o magistrado.

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Ainda trago à colação daquela reportagem que o ministro Fux salientou que “inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderado”. Para ele, esse conceito foi adotado apenas na Constituição Imperial de 1824, que via as Forças Armadas como um “quarto Poder” que não se submetia a nenhum dos outros Poderes.

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“Nenhuma Constituição republicana, a começar pela de 1891, instituiu o Poder Moderador. Seguindo essa mesma linha e inspirada no modelo tripartite, a Constituição de 1988 adotou o princípio da separação de poderes, que impõe a cada um deles comedimento, autolimitação e defesa contra o arbítrio, o que apenas se obtém a partir da interação de um Poder com os demais, por meio dos mecanismos institucionais de checks and balances”, escreveu Fux, referindo-se ao sistema de pesos e contrapesos previstos na Constituição.

Para o ministro Fux, ainda conforme registrado naquele portal, confiar esse poder de moderação às Forças Armadas “violaria” a cláusula pétrea da separação de Poderes.

Em abordagem conclusiva, o ministro Dino afirmou que “a função militar é subalterna” e que não existe, no regime constitucional brasileiro, um “poder militar”.

“O poder é apenas civil, constituído por três ramos [Executivo, Legislativo e Judiciário] ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente”, escreveu Dino, lembrando que o dia de hoje marca os 60 anos do golpe militar no Brasil, “um período abominável da nossa História Constitucional”, ocorrido em 31/3/64.

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“Há 60 anos, à revelia das normas consagradas pela Constituição de 1946, o Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força”, afirmou o ministro.

S. Exa. acrescentou que a decisão seja enviada ao ministro da Defesa para que seja difundida para todas as organizações militares, inclusive escolas de formação, aperfeiçoamento e similares. “A notificação visa expungir desinformações que alcançaram alguns membros das Forças Armadas - com efeitos práticos escassos, mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletério à Pátria”, escreveu Dino em seu voto.

A discussão se dá na ADIn 6.457.

Os militares, assim, são subalternos ao poder civil.

Pois bem.

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Alguns costumam dizer que a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Lembro que Alfred Stepan (Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira, pág. 1975) apontou que as Forças Armadas teriam desempenhado um papel moderador e atuado como árbitros dos conflitos entre os poderes no período de 1946-1964, tendo em vista as intervenções militares “cirúrgicas” nos momentos de graves crises nacionais ocorridos em 1954, 1955 e 1961. Nessa leitura, as Forças Armadas teriam exercido uma função de agentes estabilizadores da ordem, responsáveis por recompor a normalidade em situações de crise.

Na mesma linha, na Alemanha tinha-se a posição de Schmitt. Para ele, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo aí senão que o poder da força. Neste estado de exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido. Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do regime nazista.

As estreitas vinculações entre setores civis e militares, e especialmente entre elites jurídicas e militares, pavimentaram o caminho para a consolidação do regime ditatorial pós-1964, inclusive, levando em conta que as elites econômicas manifestaram seu apoio a edição do AI-5, pelo governo militar, em expressivo registro daquele período histórico.

Volto-me a parecer da OAB sobre a matéria.

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O documento divulgado, no dia 2 de junho de 2020, pela OAB destaca que “compreender que as Forças Armadas, inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo sob o comando do Presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o art. 2o, da Constituição Federal, que dispõe sobre a separação dos poderes. Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais Poderes quando da existência de conflitos referentes a suas esferas de atribuições”.

A Constituição de 1988 não admite um poder moderador.

“Concluímos pela inexistência do Poder Moderador atribuído às Forças Armadas, bem assim pela inconstitucionalidade da utilização do aparato militar para intervir no exercício independente dos Poderes da República”, afirma o parecer, assinado pelo então presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz.

O documento também foi subscrito por Marcus Vinicius Furtado Coêlho e por Gustavo Binenbojm, membro da comissão.

Para a OAB, a Constituição não confere às Forças Armadas a “atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais, mas demanda sua mais absoluta deferência perante toda a Constituição”.

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“Não cabe às Forças Armadas agir de ofício, sem serem convocadas para esse fim. Também não comporta ao Chefe do Poder Executivo a primazia ou a exclusiva competência para realizar tal convocação. De modo expresso, a Constituição estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da ordem interna está condicionada à iniciativa de qualquer dos poderes constituídos. A provocação dos poderes se faz necessária, e os chefes dos três poderes possuem igual envergadura constitucional para tanto”, destacou o parecer.

Lembro ainda daquela douta manifestação:

“Ao contrário, como muito bem exposto por Seabra Fagundes (As Fôrças Armadas na Constituição. RDA 9/1947, p. 1-29, jul./set., 1947. p. 12) com apoio no pensamento de Rui Barbosa, as Forças Armadas estão integradas e vinculadas ao comando do seu chefe supremo, o Presidente da República, que, por sua vez, tem o dever de respeito às leis e à própria Constituição. Essa cadeia de comando não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade.”

Ainda se destaca daquele parecer:

“Ao contrário, como muito bem exposto por Seabra Fagundes, com apoio no pensamento de Rui Barbosa, as Forças Armadas estão integradas e vinculadas ao comando do seu chefe supremo, o Presidente da República, que, por sua vez, tem o dever de respeito às leis e à própria Constituição. Essa cadeia de comando não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade.”

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A garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais tendo poder de intervir. Ora, isso não se amolda à Constituição-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia.

Os episódios de triste memória ocorridos entre 1964 e 1985 são um alerta.

Militar é carreira de Estado. Não de governo.

Diante desse quadro, segundo o ex-presidente Fernando Henrique, ele e o senador José Richa (PMDB-PR), quando dos trabalhos da Constituinte de 1988, participaram pessoalmente das negociações com os militares. —O que o senador Richa e eu introduzimos de novo no texto foi que qualquer dos três Poderes poderia convocar as Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem. Era usual (como é) convocá-las, em certas regiões do país, para garantir, por exemplo, que as eleições ocorram pacificamente. Nada se pensava em termos de tutela —disse Fernando Henrique ao GLOBO.

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A Constituição, pois, não pode ser interpretada por tiras, como ensinava Hesse. Ademais, cabe ao intérprete fazer sobre ela uma interpretação sistemática.

Nesse bojo, não há como dissociar a solução do problema, sem levar em conta a teoria da separação de poderes, exposta no artigo 2 da Constituição, de que esses poderes são harmônicos e independentes, e ainda de que o presidente, como chefe supremo da Nação, deve respeito à Constituição e às leis, estando as Forças Armadas sujeitas a sua obediência(art. 84, XIII e art. 142). Esse desrespeito por parte do presidente da República o levará a ser impedido, na forma da lei.

O art. 142 está inserido num sistema normativo que prevê a independência e harmonia entre os Poderes, sem que haja um Poder Moderador que exerça supremacia sobre os demais. Os controles recíprocos são a forma de composição de eventuais conflitos. As Forças Armadas não são um Poder da República, mas uma instituição à disposição dos Poderes constituídos para, quando convocadas, agirem instrumentalmente em defesa da lei e da ordem.

Com mil vênias, essa posição das Forças Armadas de querer exercer um papel de curador da democracia e de entes que pautam a sociedade brasileira, exercendo fiscalização eleitoral que a Constituição não lhe dá, foge aos limites da Constituição e pode ser um fator a contribuir com a desestabilização da democracia no Brasil.

É preciso que a sociedade fique alerta a esses movimentos.

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Foto do autor Rogério Tadeu Romano
Rogério Tadeu Romanosaiba mais

Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado, professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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