
No rastro da Cosa Nostra, o Ministério Público Federal descobriu que o elo da máfia siciliana no Brasil decidiu investir pesado no Rio Grande do Norte parte do lucro do tráfico de drogas e de sua rede de extorsões na Itália. O projeto mais ousado consistia em um empreendimento faustoso - o lançamento de dois loteamentos em uma gleba de 250 hectares, com espaço para lagos artificiais, centros de esportes, criação de gado, plantação de capim e de cana-de-açúcar - inclusive com geradores de energia eólica.
Os detalhes dos planos suntuosos da Cosa Nostra no Brasil constam da denúncia da Procuradoria levada à Justiça Federal em Natal no bojo da Operação Arancia, investigação que, em agosto passado, barrou o avanço da organização que se havia estabelecido no Rio Grande do Norte e estendeu seus tentáculos à Paraíba. Além de três italianos ligados à máfia, seis brasileiros são acusados.
Os loteamentos faziam parte do ousado e ambicioso esquema que o braço brasileiro da Cosa Nostra - que inspirou a trilogia O Poderoso Chefão nos anos 1970 -,montou no Brasil para lavar R$ 300 milhões do tráfico e de extorsões. O Escritório Conjunto de Investigação - gabinete que reúne autoridades brasileiras e italianas - estima que o valor amealhado pela organização é dez vezes maior.
A contabilidade da máfia italiana previa que um empreendimento imobiliário renderia lucro cinco vezes maior que o investimento.
A Procuradoria detalha os planos da máfia para erguer condomínios no Rio Grande do Norte, especialmente na região metropolitana da capital potiguar, em Extremoz, e em um município situado a cerca de 60 quilômetros de Natal.
O esquema era operado por três mafiosos: Giuseppe Calvaruso, Giuseppe Bruno e Pietro Ladogana. Os três estão presos. Todos foram denunciados criminalmente à Justiça Federal. Um está na prisão sob suspeita de encomenda do assassinato de seu delator. Um outro, o ‘tesoureiro’ da máfia, já foi condenado a 16 anos de cadeia na Itália. O terceiro é apontado como ‘herdeiro’ da organização. O Estadão busca contato com a defesa,
A PF e a Procuradoria encontraram os detalhes dos loteamentos após autoridades italianas apreenderem o celular de Calvaruso. Mensagens recuperadas indicam que o ‘boss-manager’ da Cosa Nostra usava uma empresa para realizar “ambiciosos projetos imobiliários para reinvestimento de capital ilícito siciliano no Rio Grande do Norte”.
Leia também
A empresa tinha um capital social de R$ 100 milhões e três sócios ‘laranjas’. Operava em uma “simples residência” no bairro da Candelária, em Natal. A investigação mostra que o verdadeiro controlador e proprietário ‘oculto’ dos imóveis milionários era inegavelmente Calvaruso - a pista que levou ao capo da Cosa Nostra no Brasil é um conjunto de fotos e mensagens identificadas em seu celular.
Foi por meio dessa empresa que Calvaruso adquiriu um loteamento de 65 hectares em Extremoz – município que ele visitou logo nos primeiros dias em que esteve no Brasil, em 2019. O plano para o loteamento era arrojado: a construção de um “extenso complexo imobiliário”, com um lucro de R$ 15 milhões para a Cosa Nostra.
Para tanto, o tesoureiro da máfia italiana fez uma proposta à cúpula do grupo: um “empréstimo” de 30 mil euros, com a promessa de devolução de 150 mil euros. As tratativas do negócio foram registradas em uma conversa de Calvaruso com Giovani Caruso – o fiel porta-voz do mafioso em Palermo, também condenado na Itália. O diálogo recuperado pelos investigadores mostra que Calvaruso tentou convencer Caruso a apoiar seus projetos e negociações.

Os investigadores apontam que uma parte da fortuna da Cosa Nostra foi usada para “pagar” pessoas diretamente envolvidas na aprovação de projetos e liberação cartorial de autorização da subdivisão das áreas do loteamento de Extremoz.

Calvaruso não cuidava apenas da gestão dos recursos ilegais do loteamento de Extremoz. Era de sua alçada o caixa da Cosa Nostra no Brasil. Junto de seus dois parceiros – Giuseppe Bruno e Pietro Ladogana - Calvaruso também investiu em um terreno em Ielmo Marinho. Ali planejava erguer o loteamento ‘Fazenda Ielmo Marinho’.
A máfia pretendia construir um notável complexo residencial com instalações esportivas e lagos artificiais. Durante buscas, a Polícia Federal encontrou com alvos da Operação Arancia um mapa da área e também um plano de negócios para a fazenda com 186,30 hectares.
“O plano detalha os lucros imediatos esperados com a criação de gado, plantação de capim e cana-de-açúcar, além de um estudo para a retirada de areia do rio que atravessa a propriedade”, destaca a Procuradoria na denúncia à Justiça, na qual incrimina os três italianos e um grupo de seis brasileiros associados aos mafiosos. Na papelada e nos diálogos dos suspeitos, os investigadores também descobriram que o grupo planejava, a médio prazo, a construção de um condomínio fechado e a instalação de geradores eólicos na fazenda, “com projeções de retorno financeiro”.

A Procuradoria indica que foi justamente a “grande capacidade de reinvestir” o capital ilícito da máfia - proveniente de crimes, como tráfico de drogas e extorsão – em “importantes atividades econômicas” que fez Calvaruso ter uma posição de destaque na Cosa Nostra.
Segundo o MPF, o mafioso concentrava duas características comportamentais próprias das máfias modernas - “a crueldade na gestão da dinâmica criminal e a astúcia na gestão das atividades econômico-financeiras”.