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‘Fui abatido com bandidos’, diz chef do Bistrot de Paris com R$ 1 mi bloqueados em ação contra o PCC

Alain Poletto, premiado dono do tradicional restaurante da Rua Augusta, nos Jardins, em São Paulo, se indigna com o fato de seu faturamento de um mês ter sido engolido pela Justiça no âmbito da Operação Concierge, investigação da Polícia Federal que mira o uso de fintechs pela facção do crime organizado; ‘Enquanto estou aqui cortando cebolas, quase R$ 1 milhão sumiu e isso parece normal’

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Foto do author Rayssa Motta
Foto do author Fausto Macedo
Atualização:

O chef Alain Poletto, de 67 anos, dono do premiado Bistrot de Paris, na Augusta, em São Paulo, vive um drama que transformou suas noites de sono em pesadelo. Ele estava de férias na França, seu país natal, quando recebeu uma ligação do sócio. Era início de agosto do ano passado. Imediatamente, quando seu celular chamou, suspeitou que receberia más notícias. Alain raramente tira dias de descanso, por isso, quando se ausenta do restaurante, é poupado dos assuntos de trabalho. A ligação, afinal, dava conta de uma situação excepcional: a Justiça Federal havia bloqueado quase R$ 1 milhão da conta do restaurante, valor correspondente a todo o faturamento de julho.

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A medida foi decretada no âmbito da Operação Concierge, investigação da Polícia Federal sobre esquema de lavagem de dinheiro do PCC, a poderosa facção do crime organizado.

O alvo do confisco foi a InovePay, fintech responsável pelas máquinas de cartão de crédito e débito usadas no bistrô. Todo o dinheiro do restaurante ficou inacessível. Seus advogados se empenham em reaver os R$ 960 mil (valores atualizados), de origem lícita e comprovada, como alegam, mas essa é uma batalha inglória - a areia movediça de recursos processuais e instâncias judiciais só faz aumentar a angústia de Alain.

A situação do Bistrot de Paris não é isolada. Ao menos 2.600 empresas, entre postos de combustíveis, bares, sindicatos e associações que também usavam as máquinas de cartão da InovePay, tiveram seu faturamento de julho do ano passado engolido pela malha fina da Operação Concierge, embora em dia com tributos e obrigações perante o Tesouro e nenhum elo com o crime organizado.

“Fui abatido junto com os bandidos. Como a Justiça está se comprometendo com os meus direitos?”, protesta Alain.

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Ele recebeu o Estadão no bistrô na última sexta, 7, com seus advogados, Eduardo Levy Picchetto e Ana Carolina Moreira Santos.

Sem acesso ao dinheiro, e com os salários de 35 funcionários em aberto, o chef não teve alternativa. Interrompeu imediatamente as férias com a família e voltou ao Brasil para pedir um empréstimo e pagar os colaboradores - a rede da Operação Concierge capturou, inclusive, R$ 120 mil reservados aos funcionários a título de “caixinha” paga pela freguesia.

Para contornar a crise, Alain procurou os fornecedores, parceiros seus de longa data. Um a um pediu prazo para quitar os boletos. A maioria assentiu.

“Foi uma notícia brutal. Não consegui mais dormir”, indigna-se. “Imagina o desgaste emocional. Não dá para adiar pagamentos indefinidamente. Estou vivendo uma história dramática, chega a ser inacreditável. Fui capturado pelo Estado.”

Filho de um italiano refugiado na França no pós-Guerra, Alain Poletto cresceu na cozinha do pequeno restaurante da família em Thonon. Ele se tornou referência mundial na tecnologia Sous Vide (cocção a vácuo). Aportou no Brasil em 2002. Depois de duas décadas como professor titular na Faculdade de Thonon-les–Bains, trocou as salas de aula pelas cozinhas em São Paulo.

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Modernizou a rotisserie Paola di Verona, que marcou época na capital paulista, nas décadas de 1990 e 2000, por suas boas massas. Depois, foi parceiro de Alex Atala no Dalva & Dito, restaurante dedicado à culinária brasileira. Na sequência, Abílio Diniz o convidou para consultor no Grupo Pão de Açúcar. Mas foi no Bistrot de Paris que ele se encontrou. O restaurante é sua grande paixão. Ali, bate ponto todos os dias.

O restaurante - um bistrô tradicional francês - serve pratos clássicos. O trabalho foi reconhecido pelo Guia Michelin, que concedeu ao Bistrot de Paris o selo Bib Gourmand, classificação que destaca estabelecimentos que servem boa comida a preços justos.

Alain Poletto, chef do Bistrot de Paris. Foto: Arquivo pessoal

Alain Poletto orgulha-se de seu feito na culinária. Na entrevista ao Estadão, antes da abertura do salão, na sexta passada, relembrou sua trajetória e contou como cada detalhe do Bistrot de Paris foi pensado e executado por ele, da pintura das paredes até as plantas que decoram a área externa.

O bloqueio integral do faturamento foi um golpe duro no bistrô e no coração do chef. O restaurante sobreviveu até à pandemia da covid-19 com operações de delivery. Nenhum funcionário foi demitido durante a crise sanitária. Agora, o empreendimento dos sonhos de Alain se vê outra vez sob pressão.

Ele até pôs à venda garrafas de sua preciosa adega para fazer caixa. Também esticou sua jornada diária para monitorar as operações e evitar desperdícios. Com isso, busca reduzir custos. As providências ainda não são suficientes para regularizar as contas. “É uma questão de sobrevivência”, afirma Poletto.

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Operação Concierge

Ao autorizar a Operação Concierge, a Justiça Federal em Campinas, no interior de São Paulo, mandou congelar os ativos da InovePay - R$ 850 milhões - e transferir o dinheiro para uma conta judicial, em meio às investigações por suspeita de lavagem de dinheiro do PCC. A InovePay nega ligação com o esquema revelado pela Polícia Federal.

Segundo a PF, uma quadrilha oferecia abertamente, inclusive em sites, contas clandestinas “invisíveis ao sistema financeiro e blindadas contra ordens de bloqueio, penhora e rastreamento, sem conexão entre remetentes e destinatários e sem ligação entre correntistas e bancos de hospedagem”. O esquema teria movimentado R$ 7,5 bilhões.

Quando o bloqueio foi decretado, atingiu também o dinheiro que ainda seria transferido pela InovePay aos clientes que efetivamente usavam as máquinas de cartão no seu dia a dia de transações. São comércios, como o Bistrot de Paris, idôneos e regularmente constituídos.

Ao se verem sem o dinheiro em suas contas, as empresas acionaram a Justiça. Pediram para participar do processo como “terceiros de boa-fé”. São dezenas de representações, acompanhadas de milhares de documentos que comprovam as operações financeiras.

O volume de pedidos levou a Justiça Federal a suspender a tramitação de todos os recursos com a justificativa de que “demandariam grande lapso temporal para análise individual”. A juíza Valdirene Falcão, da 9.ª Vara Federal Criminal de Campinas, que autorizou a Operação Concierge, também proibiu novos peticionamentos na ação, “sob pena de atraso demasiado em seu processamento”.

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Faturamento do restaurante de Alain Poletto foi bloqueado na Operação Concierge.  Foto: Arquivo pessoal

Os estabelecimentos têm alegado que o dinheiro é imprescindível para a manutenção de suas atividades e para o cumprimento de compromissos financeiros.

Além do grande número de empresas afetadas, outro fator contribui para atrasar o desfecho do caso. Há um impasse em torno da esfera judicial competente para analisar os recursos - cível ou criminal. Não há um consenso sobre em que porta da Justiça os empresários devem bater para buscar os pagamentos a quem têm direito. Como os estabelecimentos estão distribuídos em diferentes Estados, há processos pulverizados, tramitando em diversos tribunais, o que tornou o caso ainda mais complexo.

A InovePay alega estar “totalmente impossibilitada” de apresentar a relação exata de valores a serem repassados aos estabelecimentos, já que os documentos e computadores da fintech foram apreendidos pela Polícia Federal.

As instituições financeiras - Adiq Pagamentos e Banco BS2 (antigo Banco Bonsucesso) - que intermediavam os repasses da InovePay a seus clientes chegaram a ser nomeadas fiéis depositárias do dinheiro para restituir os estabelecimentos. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal emitiram pareceres favoráveis aos pagamentos. Algumas parcelas foram liberadas. No entanto, as instituições mudaram de advogados e de postura no processo. Passaram a alegar que apenas a Inovepay sabe os valores líquidos devidos a cada estabelecimento, conforme operações, custos e taxas contratadas por cada um deles. O dinheiro acabou transferido novamente para uma conta judicial.

Os contratos das empresas que usavam as máquinas de cartão da InovePay estavam em um aplicativo, que saiu do ar após a operação da PF. Os advogados Eduardo Picchetto e Ana Carolina Moreira Santos, que representam o Bistrot de Paris, comprovaram a entrada dos valores no sistema da Receita. Ainda assim, o faturamento do restaurante não foi liberado.

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“Busco manter a confiança no nosso trabalho, mas enquanto estou aqui cortando cebolas R$ 1 milhão sumiram e isso parece normal”, lamenta o chef Alain Poletto.

COM A PALAVRA, A ADIQ

A Adiq informa que era uma das credenciadoras utilizadas pela I9Pay e que já comprovou ao juízo a liquidação de 100% das transações que passaram em seus sistemas. A Adiq não detinha relações comerciais com os estabelecimentos clientes da I9Pay, portanto, sua obrigação de liquidação, pelas regras dos arranjos de pagamento, era exclusivamente para com a I9Pay, o que resta plenamente cumprido e demonstrado ao juízo competente.

Some-se a isso o fato de que a I9Pay também trabalhava com outras credenciadoras. Se os estabelecimentos comerciais, clientes da I9Pay, possuem valores em aberto a receber, devem acionar a própria I9Pay, que é a empresa com a qual mantinham relações.