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Opinião|ICMS e a (des)harmonia entre os Poderes

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Por Leonardo Aguirra e Pedro Wieck

Mesmo com o seu fim já decretado (em 2033 será substituído pelo inédito IBS), o ICMS, imposto estadual sobre circulação de mercadorias, segue dando dor de cabeça aos contribuintes. O problema da vez é o tratamento a ser dado às operações de transferência interestadual de mercadorias, nas quais os bens são remetidos a estabelecimentos diferentes, mas de titularidade da mesma empresa. Um exemplo é a remessa de bens entre uma planta fabril e um centro de distribuição pertencentes ao mesmo dono: em que pese exista circulação física da mercadoria, ela não muda de proprietário.

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Se não há troca de titularidade da mercadoria, é evidente que o imposto – que incide sobre compras e vendas de mercadorias – não deveria ser cobrado. Afinal, a sua mera movimentação física (equivalente a trocar um item de prateleira) não é fato que justifique uma nova cobrança tributária. Essa constatação não é nova. Desde 1996, com a edição da Súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), já havia uma clara sinalização nesse sentido e isso veio a ser reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 1099 no Regime de Repercussão Geral.

Até então o cenário era o seguinte: quem se sentisse prejudicado com esse tipo de situação (vale dizer, a tributação das operações entre estabelecimentos do mesmo contribuinte) poderia buscar o Poder Judiciário para afastar a cobrança do ICMS. Aqui vale um registro importante: a maioria dos contribuintes não tinha interesse nesse tipo de discussão, porque o afastamento da cobrança do ICMS devido pelo primeiro estabelecimento (remetente) resultava na perda do crédito no segundo estabelecimento (destinatário). Para uma pequena parcela de contribuintes, sobretudo, no caso em que havia benefícios fiscais no Estado de destino que reduzissem ou zerassem os débitos de ICMS na venda subsequente e, portanto, mitigavam ou afastavam a necessidade de apuração de créditos, o tema se mostrava pertinente.

Embora existisse uma consolidação da jurisprudência do STJ e do STF sobre o tema, as leis estaduais e do Distrito Federal continuaram exigindo o ICMS nessas operações e a maioria dos contribuintes não via problema nisso (como dito, para não perder o crédito no estabelecimento destinatário). As decisões do STJ e do STF, até então, não tinham efeitos vinculantes para os Poderes Executivos estaduais (isto é, as decisões não afastavam a eficácia geral das leis estaduais), porque os julgamentos foram realizados em regimes que vinculavam apenas o Poder Judiciário. Ou seja, quem entrasse com a ação ganharia, quem não tivesse interesse no tema não entraria com uma ação sobre o assunto. Assim, havia uma espécie de opção jurídica pela tributação ou não desse tipo de operação, exercível mediante o ajuizamento de uma ação judicial.

Apesar de ser estranha essa opcionalidade na tributação, esse cenário vigorou em 1996 e 2021, quando o Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 49, que se encerrou, após alguns embargos de declaração, em 2023. Nesse julgamento, foi reconhecida a inconstitucionalidade parcial da Lei Complementar nº 87/1996, resultando na impossibilidade da cobrança do ICMS sobre a circulação de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, ainda que em Estados diferentes. A mudança foi significativa, sobretudo, porque, no regime de ações diretas de constitucionalidades ou inconstitucionalidade, as decisões do STF têm o tal efeito vinculante: os Poderes Executivos devem respeitá-las.

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Agora, mesmo os contribuintes que não tinham interesse no assunto passaram a ser impactados, seja pelo risco de perda dos seus créditos no estabelecimento destinatário, seja pelo risco de questionamento pelos Estados de origem quanto ao direito de utilização dos seus créditos em um cenário em que há mais tributação na saída das mercadorias, ou ainda pela reconfiguração dos benefícios fiscais nos Estado de origem baseados na existência de carga tributária. Aquela discussão que era excepcional se tornou uma regra, aplicável a todos os contribuintes com operações nacionais.

No próprio julgamento da ADC 49, o STF também buscou solucionar o problema do crédito das operações anteriores: sendo o ICMS um imposto não cumulativo, a Constituição Federal assegura o direito a se creditar do imposto pago nas operações prévias, reduzindo o débito apurado nas saídas subsequentes. Numa cadeia longa (do fabricante/importador ao consumidor), o direito de aproveitar e carregar o crédito se mostra essencial, porque garante que não haja acumulação de imposto já pago em etapas anteriores e consequente prejuízo ao consumidor final.

Ao julgar o tema, o STF assegurou o direito do contribuinte de manter o crédito das operações anteriores e transferi-lo ao Estado do destino, mas permitiu aos Estados que disciplinassem os pormenores desse procedimento até o início de 2024, dando efeitos práticos ao entendimento da Corte Suprema. Assim, era necessário que Judiciário, Legislativos Federal e Estaduais e Executivo funcionassem em harmonia, para produzir uma solução eficaz ao problema das transferências interestaduais que já durava décadas.

Mesmo com a aparente resolução desse debate na esfera judicial, Legislativo e Executivo batem cabeça, contrariam o STF e geram incertezas ao contribuinte.

O resultado que temos atualmente gera insegurança jurídica e incertezas. Por parte dos Estados, houve uma movimentação para editar um convênio (nº 174/2023), espécie de norma coletiva elaborada pelos secretários estaduais, no qual disciplinaram que o contribuinte é obrigado a transferir o crédito ao estabelecimento de destino. Mesmo não sendo possível criar tal obrigatoriedade por meio de Convênio, os Estados assim o fizeram, o que tende a disparar um novo contencioso judicial sobre o assunto.

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Se a decisão do STF fala em direito de transferência do crédito, soa equivocada a noção de criar uma obrigatoriedade, especialmente quando se considera que, no regime anterior, a incidência do ICMS também resultava em uma transferência obrigatória dos créditos, já que o recolhimento do imposto pelo mesmo contribuinte implicava o aproveitamento de crédito em igual valor no Estado de destino.

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O Estado do Rio de Janeiro não concordou com o Convênio nº 174/2023 (como consta do Decreto nº 48.799/2023), dentre outras razões, porque ele não garantia a facultatividade assegurada pela na decisão do STF. Posteriormente, um novo Convênio (nº 178/2023) foi editado, porém foi mantida a obrigatoriedade de transferência do crédito de ICMS nesse tipo de operação. Como se vê, nem mesmo entre os Estados da federação há um consenso, típica situação em que se faz necessária uma lei complementar.

O Legislativo Federal procurou resolver a questão por meio da aprovação de uma lei complementar (nº 204/2023), que estabelecia um regime duplo: os contribuintes poderiam realizar a transferência dos créditos anteriores sem a incidência do imposto e, caso desejassem, seria possível tratar a operação como tributável, tal qual ocorria no regime anterior. A proposta, todavia, não foi acolhida pelo Executivo Federal, que vetou parte da lei, mantendo apenas a hipótese da não incidência do ICMS.

Aqui se verificou uma tentativa de manter a referida opção jurídica, porém com um texto que nada diz sobre a obrigatoriedade ou facultatividade da transferência dos créditos. A faculdade de transferência de créditos era implícita na opção de tributação. Adotou-se uma técnica legislativa ruim, que desconsiderava o risco de veto à opção de tributação. Logo, nesse ponto, a Lei Complementar nº 204/2023 não resolveu o problema, nem deu base legal para o Convênio nº 178/2023, que permanece prevendo uma obrigação (de transferência de créditos de ICMS) desprovida de fundamento em lei complementar.

Vale frisar que o cenário da não incidência não é benéfico a todos. Para parte significativa dos contribuintes que aproveitam de benefícios fiscais calculados sobre operações de saída de mercadorias, a não incidência é prejudicial, porque reduz o valor de créditos presumidos a serem apurados no Estado de origem. Operações de remessas entre o parque industrial e o centro de distribuição, por exemplo, deixam de ser computadas sob o novo regime, diminuindo o montante de créditos apurados. Para esses contribuintes, a solução dada pela nova lei complementar seria ideal, mas o Executivo Federal a vetou.

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Para piorar, poucos Estados editaram normas para internalizar o Convênio 178/2023 e a Lei Complementar nº 204/2023 gerando dúvidas sobre como operacionalizar as obrigações acessórias aplicáveis nessas operações. Isso levou os Estados a editarem um Convênio (nº 228/2023) para permitir a manutenção das mesmas obrigações acessórias vigentes em 31 de dezembro de 2023 até 30 de abril de 2024. Porém, não se sabe, ao certo, se todos os Estados vão concordar com essa nova regra, uma vez que ela é desprovida de base na Lei Complementar nº 204/2023 e contrária à decisão do STF. Está instaurado o completo caos normativo nessa matéria.

Se Judiciário, Legislativo e Executivo não conseguem entrar em acordo, a penalização recai sobre o contribuinte, que precisa navegar 27 legislações distintas, normas conflitantes e o risco de ser autuado em um cenário de absoluta incerteza. Enquanto não haver cooperação e harmonia entre os Poderes para solucionar essa questão, o contribuinte sonha com a chegada de 2033 e, quiçá, com um imposto menos complexo e mais justo. Enquanto isso, a tendência é que sejam ajuizadas ações judiciais contra o Convênio nº 178/2023, por contrariar a decisão do STF e por invadir o campo das leis complementares.

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Leonardo Aguirra
Doutor em Direito Tributário pela USP, sócio do Andrade Maia Advogados
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