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Opinião|Mais uma morte anunciada

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Atualização:

De boas intenções o inferno está cheio. O anteprojeto de Código Civil é uma coleção de retrocessos, que provocará nefasto caos no sistema Justiça brasileiro. Dentre os atentados já expostos por um grupo de juristas, dentre os quais a notável civilista Judith Martins Costa (“Preocupante, reforma do Código Civil pode trazer insegurança e litigiosidade”, FSP, 15.4.24), acrescente-se o golpe de morte a uma instituição que funciona a contento: o Registro Civil das Pessoas Naturais.

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Esta delegação extrajudicial é a serventia mais democrática a serviço da cidadania. Todas as pessoas nascem e morrem, quase todas se casam. O Oficial do Registro Civil certifica tais condições. Não há brasileiro que possa dispensar seus préstimos. A paciente edificação de uma estrutura ágil, cuja eficiência é comprovada, corre o risco de desabar, se o anteprojeto se converter em lei.

O texto apresentado ignora o que significa o casamento na história da civilização. Sua simbologia, o caráter sacro de constituir o fundamento da família, a tradição multimilenar e o valor jurídico universalmente reconhecido. Tamanha a solenidade do matrimônio, que é antecedido por um procedimento de habilitação, com vistas à identificação e qualificação dos nubentes, verificação da capacidade para contrair casamento. Explicita-se a manifestação de vontade dos interessados, a ausência de impedimentos matrimoniais, mediante análise documental e testemunhal. Esclarece-se o que pode invalidar o casamento, a diferença entre os diversos regimes de bens e publicizam-se as informações sobre a futura união. Essa fase pode gerar incidentes, assim como a dispensa de proclamas e eventual oposição.

A sistemática da habilitação já mereceu recente atenção do Parlamento e, com a edição da Lei 14.382/2022, a publicação do edital de proclamas se faz por meio eletrônico, sem a necessidade de publicação física no local de residência de cada nubente. Não havendo fato obstativo, o certificado de habilitação é extraído em até cinco dias, contados do requerimento. Sua validade é de noventa dias, o que propicia a realização de casamento em qualquer Registro Civil do Brasil, salientando-se que essa delegação extrajudicial é a mais presente em todos os rincões. Não há cartório com a capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais. A cerimônia pode ser realizada por videoconferência, além da forma presencial.

Em nome de pretensa celeridade, o anteprojeto elimina a tradicional habilitação de casamento, substituindo-a por um “procedimento pré-nupcial”. A identificação dos nubentes se fará de forma física ou virtual e o Oficial realizará buscas no sistema eletrônico de dados pessoais, para conferir a idade núbil, o estado civil dos interessados e sua capacidade de exercício. Após obter tais informações, o Oficial registrador fará a verificação junto ao Sistema Nacional de Produção de Embriões, para constatar possível impedimento para o casamento. Só então, o registrador certificará a aptidão dos nubentes para a celebração do casamento. Todos esses atos de busca, verificação, certificação, com evidente dispêndio de tempo, são gratuitos, assim como a celebração do casamento e registro da conversão da união estável.

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Flagrante o retrocesso das inovações pretendidas. Extinguir o procedimento de habilitação, cujo trâmite é abreviado e nunca foi alvo de questionamento de parte da população, representa vistosa insegurança jurídica. Não se garante identificação e qualificação escorreita. Elimina-se a prudente checagem documenta e testemunhal. Desaparece a missão que qualifica e enobrece o Registrador Civil, que é alertar os deveres e obrigações dos nubentes. Acrescente-se que o sistema eletrônico de dados pessoais – CRC – não atesta fatos jurídicos. Isso é função do Oficial, por meio de certidões, pois só o delegatário é possuidor da fé pública estatal. A CRC é mero instrumento, ferramenta facilitadora de buscas e direcionamentos. Tanto que ela dispõe exclusivamente dos índices dos livros e não os registros. O que impedirá verificar a idade núbil, estado civil ou capacidade dos que pretendam se casar.

Mais uma vez, o Estado lesa o Registro Civil, forçado a realizar uma tarefa estatal, para a qual recebeu delegação após árduo concurso, realizado pelo Tribunal de Justiça, sem a devida e justa remuneração. Na ordem jurídica brasileira não existe a hipótese de trabalho escravo ou gratuito. A gratuidade, com a qual o RCPN já fora apenado, significa injusta quebra do equilíbrio econômico financeiro. Debilita a estratégia do constituinte de 1988 que encontrou a melhor solução para a prestação extrajudicial, que tem caráter privado, embora seja pública. Golpeia o já frágil federalismo tupiniquim, pois os emolumentos têm a natureza de taxa estadual, vedado à União dispor sobre eles.

Os Tribunais de Justiça, com vistas à sustentabilidade do Registro civil das Pessoas Naturais, criaram fundos de compensação que são paliativos, pois o sustento da atividade essencial ao exercício da cidadania é responsabilidade do Estado. Tais fundos, hoje insuficientes, se tornarão insustentáveis. Isso implicará na extinção dos Registros Civis das Pessoas Naturais, o que equivale à morte da cidadania no Brasil. Os milhares de devotados titulares do RCPN, que propiciaram ao país os dados imprescindíveis ao combate à epidemia da COVID19, padecerão esse aniquilamento cruel. Despreparo de quem redigiu o anteprojeto? Interesse em fulminar uma das poucas experiências exitosas no complexo universo jurídico? A inexplicável pressa, a maior inimiga da perfeição? Ou mais um ponto falho, na incalculável multiplicidade de problemas gerados pelo atropelo?

Convidado deste artigo

Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral e docente da pós-graduação da Uninove. Foi corregedor-geral e presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo entre 2012 e 2015. Foto: Alex Silva/Estadão
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