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Opinião|Mudanças na regulamentação da CGU da Lei Anticorrupção não garantem imparcialidade

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Em 20 de agosto de 2023, teve fim o prazo para a apresentação de contribuições à minuta disponibilizada em consulta pública pela Controladoria Geral da União (CGU) referente à portaria que passará a disciplinar a celebração de termo de compromisso nos casos da prática dos atos lesivos da Lei 12.846/2013 (conhecida popularmente como a “Lei Anticorrupção”). A nova norma substituirá a Portaria Normativa nº 19/2022, que trata do julgamento antecipado no âmbito dos Processos Administrativos de Responsabilização (PAR).

Ricardo Campello, Paula Carvalho e Camila Cardoso Foto: Divulgação

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Apesar das notáveis melhorias identificadas em comparação com a Portaria Normativa nº 19/2022 (por exemplo, no que se refere à natureza jurídica do ato administrativo a ser celebrado pela pessoa jurídica, agora fundamentado no art. 49, III, da Lei 14.600/2023 e no art. 26 da LINDB, bem como ao detalhamento das etapas do procedimento a ser seguido), a nova portaria, pelo menos na forma da sua minuta atual, ainda apresenta disposições preocupantes.

Entre elas, o seu atual art. 6º, II, que prevê que o requerimento de celebração de termo de compromisso deverá ser analisado “pela comissão processante, na hipótese de PAR que se encontre na fase de instrução”. A previsão não trata da unidade da CGU ao qual o requerimento deverá ser endereçado – já que, pelo seu atual art. 4º, caput, este deverá ser sempre endereçado à Secretaria de Integridade Privada –, mas sim da unidade que de fato terá competência para realizar a sua instrução (ainda que supervisionada pela Diretoria de Responsabilização de Entes Privados ou pela Diretoria de Acordos de Leniência – art. 6º, §1º).

Ao atribuir essa competência à comissão processante, a intenção da CGU parece ter sido prestigiar o princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB/1988), já que, sem dúvida, seria aquela que melhor conheceria o caso concreto no momento do requerimento (podendo lhe dar um tratamento mais célere). No entanto, essa eficiência não pode se dar em detrimento do direito do administrado de ter um julgamento justo e imparcial na hipótese de ter o seu requerimento rejeitado pela CGU.

Ainda que o princípio da imparcialidade não esteja expressamente positivado na Lei Anticorrupção (mas somente no art. 15 da Instrução Normativa 13/2019 da própria CGU, que regulamenta a tramitação do PAR), fato é que, há muito, já foi incorporado pela jurisprudência e pela doutrina como premissa para legalidade da condução de processos administrativos sancionadores. Isso por ter justamente a finalidade de impedir “que o procedimento administrativo seja conduzido por um sujeito que tenha formado previamente o seu convencimento, orientando a sua conduta e desenvolvendo a atividade à obtenção de um resultado predeterminado” (JUSTEN FILHO, Marçal. 2018).

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É possível notar que a CGU chega a prever alguns mecanismos na minuta na tentativa de atingir essa finalidade. Por exemplo, que “a desistência do pedido ou sua rejeição não importará em reconhecimento da prática do ato lesivo investigado e, em nenhuma hipótese, configurará justificativa para impor ou agravar as sanções aplicáveis à pessoa jurídica” (art. 4º, §3º); que “a Administração Pública não poderá utilizar os documentos recebidos em razão da apresentação da proposta” (art. 4º, §4º); ou que “o requerimento de termo de compromisso poderá ser processado em autos específicos de forma autônoma, com acesso restrito” (art. 4º, §2º).

No entanto, tais mecanismos não são, por si sós, suficientes. Considerando que uma das condições para a apresentação do requerimento de celebração do termo de compromisso é que a pessoa jurídica admita sua responsabilidade (objetiva) pelos atos lesivos, fornecendo “provas e relato detalhados daquilo que for de seu conhecimento” (art. 2º, I), não se pode garantir que, após ter tido acesso a essas informações, os membros da comissão processante não serão subjetivamente influenciados a sugerir a condenação da pessoa jurídica caso, ao final, se dê continuidade ao PAR.

De que adiantaria o processamento do requerimento em autos específicos, com acesso restrito, se quem terá acesso a esses autos e fará a análise das informações fornecidas pela pessoa jurídica será justamente os servidores da comissão processante? No mesmo sentido, apesar de ser de fato necessária a previsão de que a desistência ou rejeição do requerimento não implica reconhecimento da prática do ato lesivo, na prática, ela impede tão somente que os servidores utilizem posteriormente – formalmente/oficialmente falando – as informações fornecidas pela pessoa jurídica com a finalidade de responsabilizá-la. No entanto, esse não é o principal problema, mas sim o consciente do servidor membro da comissão processante que terá acesso a essas informações em um contexto de assunção de responsabilidade.

Ou seja, caso o seu requerimento venha a ser rejeitado, a pessoa jurídica acabaria se expondo de forma desnecessária frente à mesma comissão processante que será responsável por dar continuidade ao PAR (e que terá grande influência no seu julgamento).

Agrava esse cenário o fato de a minuta sequer tratar das hipóteses objetivas em que a CGU poderá optar por rejeitar o requerimento da pessoa jurídica, aumentando ainda mais a incerteza e a insegurança jurídica. Não obstante a minuta disponha que “preenchidos os requisitos de que trata esta Portaria Normativa, o Ministro de Estado da CGU celebrará o termo de compromisso com a pessoa jurídica interessada” (art. 9º, caput), alguns desses requisitos são subjetivos e ficará a cargo da Administração Pública dizer se foram preenchidos ou não. É o caso, por exemplo, da suficiência das “provas e relato detalhados” apresentados pela pessoa jurídica (art. 2º, I).

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Essa discussão é relevante já que, muitas vezes, a opção pela pessoa jurídica pelo julgamento antecipado do PAR (ou, em breve, pela celebração do termo de compromisso), não se dá a partir de uma análise quanto à sua concordância ou não com relação à conduta que lhe foi imputada. Mas, sim, como fruto de uma simples análise com a finalidade de minimizar perdas patrimoniais e/ou evitar riscos reputacionais que possam decorrer de eventual condenação ao final do PAR. Uma simples análise de custo-benefício.

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Portanto, entende-se que a CGU deverá rever a previsão do atual art. 6º, II, da minuta disponibilizada em consulta pública. Uma solução seria, por exemplo, acatar a contribuição do IBRAC no sentido de que a análise do requerimento de celebração do termo de compromisso “seja sempre realizada por comissão processante independente”. Isso de modo a garantir efetivamente o direito do administrado de ter um julgamento justo e imparcial na hipótese de ter o seu requerimento rejeitado. Não obstante essa alteração possa de fato implicar uma perda de eficiência pela Administração Pública, entende-se que tal perda seria justificável à luz desse contexto. Especialmente considerando que poderia evitar a judicialização de grande parte de decisões proferidas nesses casos.

*Ricardo Campello, Paula Carvalho e Camila Cardoso são, respectivamente, sócio e advogadas do Licks Attorneys

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