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O desafio regulatório da cannabis no Brasil

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Por Henrique Rocha e Júlia Bessa Sanzi
Atualização:
Henrique Rocha e Júlia Bessa Sanzi. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

As evidências históricas apontam para o uso medicinal e industrial da cannabis há milênios e, na antiguidade, os atributos positivos da planta foram amplamente reconhecidos pela humanidade. Entretanto, em dado momento da história moderna, a substância passou a ser vista de maneira negativa e, desde sua chegada no território brasileiro, por meio de escravos africanos, o tema tem sido pauta de muita discussão e preconceito.

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Em meados do século XX, muito influenciado pela repressão de drogas ocorrida no mundo todo, especialmente após a Conferência Internacional do Ópio de 1912, o Brasil passou a reprimir o uso da cannabis e associar o seu consumo a algo pejorativo e extremamente reprovável.

A primeira legislação a proibir seu consumo, comércio, porte ou doação no Brasil foi o Decreto-Lei n.º 20.930 de 1932 e, a partir de então, a cannabis esteve inserida no rol de substâncias proscritas. O cenário legislativo atual é dado pela Lei n.º 11.343 de 2006 que proíbe, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas as drogas.

Entretanto, a evolução das pesquisas científicas relacionadas ao tema demonstra, de forma cada vez mais robusta, os inúmeros benefícios da inovação com o uso da cannabis para a sociedade como um todo.

Sobre sua capacidade medicinal, especialmente, os estudos revelam sua eficácia no tratamento de múltiplas doenças do corpo (epilepsia, efeitos do câncer, glaucoma, esclerose múltipla, dor crônica) e da mente (Alzheimer, autismo, ansiedade, depressão, insônia), fato que tem sido determinante para o avanço da descriminalização da substância ao redor do mundo.

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Nos Estados Unidos, por exemplo, cada Estado pode legislar sobre o tema, apesar da existência da "Controlled Substances Act" de 1971, legislação federal que considera a cannabis uma substância com alto potencial de abuso e proíbe seu consumo. No entanto, nas últimas duas décadas, a Suprema Corte Americana restringiu a aplicação das leis federais quando em conflito com leis estaduais que permitem o uso da cannabis, o que resultou no processo de legalização em diferentes Estados. Atualmente, do total de 50 Estados norte-americanos, 38 já autorizam algum tipo de uso da substância, seja para fins medicinais ou para uso adulto, o que representa 76% do total de Estados flexibilizando o consumo.

Na América Latina, o cenário também tem avançado. O Uruguai foi o primeiro país sul-americano a aprovar uma lei que permite o cultivo de cannabis para autoconsumo recreativo, em 2013, entendimento que foi seguido no Chile, na Colômbia e no Peru. Em mesmo sentido, neste ano de 2022, a Argentina tomou uma importante decisão sobre o assunto e decidiu regularizar a cannabis medicinal e o cânhamo industrial no país[1] - a nova legislação estabelece a criação de uma agência reguladora, que é responsável por regulamentar, controlar e emitir as autorizações administrativas com respeito ao uso da cannabis, de sementes da planta e de seus produtos derivados.

Apesar da nítida tendência global e alta demanda nacional, é possível notar grande resistência do legislativo brasileiro quanto à matéria, o que tem dificultado o acesso à substância daqueles que realmente necessitam de tratamento alternativo, além de sobrecarregar o Poder Judiciário com as demandas familiares que buscam por autorização para autocultivo ou acesso à tratamento via Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foram concedidas mais de 30.000 (trinta mil) novas autorizações para importação de produtos à base de cannabis, somente no ano de 2021, dados que foram compilados pela BRCANN, Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides[2].

Além disso, a carência legislativa dá ensejo a regulamentações advindas da ANVISA e do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) que, muitas vezes, estão em descompasso, o que gera uma insegurança jurídica ainda maior.

Vale destacar um grande marco trazido pela ANVISA quando da edição da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 327, em 09 de dezembro de 2019, momento em que a agência reguladora definiu condições e procedimentos para a concessão de Autorização Sanitária para fabricação e importação, bem como estabeleceu requisitos para comercialização, prescrição, monitoramento e fiscalização de produtos derivados de cannabis para fins medicinais.

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A nova categoria regulatória criada exclusivamente neste contexto foi responsável por facilitar o procedimento para fabricação e comercialização dos produtos à base de cannabis, desde que destinados a cuidados paliativos exclusivamente para pacientes sem alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais, o que permitiu um tratamento mais acessível à população e menos custoso.

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Ainda, recentemente, a ANVISA editou a RDC n.º 660, em 30 de março de 2022 que, consolidando as anteriores n.º 335 e 570, definiu os critérios e os procedimentos para a importação de produto derivado de cannabis para tratamento de saúde, pelo paciente pessoa física, seu responsável legal ou procurador constituído, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado. Para importação e uso do produto, os pacientes devem se cadastrar junto à ANVISA, por meio do formulário eletrônico disponível no Portal de Serviços do Governo Federal[3].

Em contrapartida, após 8 (oito) anos de sua última orientação acerca do tema, o CFM editou a Resolução n.º 2324, em 11 outubro de 2022, mais restritiva e em total desacordo com o que as pesquisas científicas têm demonstrado. Isso porque, a norma autoriza que produtos à base de cannabis sejam utilizados apenas para o tratamento de alguns quadros de epilepsia (Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa), proibindo que a haja prescrição médica de quaisquer outros derivados da cannabis que não o canabidiol.

Segundo o CFM, os médicos que não cumprissem as novas normas ficariam sujeitos a punição, que poderia variar desde advertência até a cassação do registro profissional, situação que representaria grande retrocesso à autonomia dos profissionais da saúde e, ainda, lesaria os milhares de pacientes brasileiros que atualmente fazem o uso da cannabis para o tratamento de doenças, transtornos, distúrbios e sintomas diversos.

Após grande repercussão pública, em 24 de outubro de 2022, o CFM decidiu sustar temporariamente os efeitos da Resolução CFM n.º 2324, comunicando a reabertura de Consulta Pública a toda a população para receber contribuições, visando a atualização da norma, que permanece em vigor. Os interessados terão entre 24 de outubro a 23 de dezembro de 2022 para apresentar suas sugestões, por meio de uma plataforma eletrônica desenvolvida especificamente para esse objetivo, mecanismo fundamental ao diálogo entre a administração pública e a sociedade.

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A despeito da Consulta Pública, vale dizer que a alteração deste cenário de incertezas de forma permanente ainda fica sob a responsabilidade do Poder Legislativo, vez que as resoluções sobre o assunto são contraditórias e não possuem força de lei, enquanto as decisões do Poder Judiciário são, em geral, proferidas caso a caso, de acordo com as peculiaridades de cada demanda.

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*Henrique Rocha, advogado, mestre em Direito Empresarial e sócio no Peck Advogados

*Júlia Bessa Sanzi, advogada atuante na área de Contencioso Digital e Gestão de Crise no Peck Advogados. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e pós-graduada em Direito Digital e Compliance pelo Damásio Educacional. Certificada como DPO pela EXIN

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