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Opinião|O embate entre Elon Musk e o STF

convidado

Depois de o dono da plataforma X, Elon Musk, ter ameaçado descumprir ordens judiciais para remover o conteúdo de mensagens postadas por milicias digitais, o Supremo Tribunal Federal determinou que ele seja investigado em casos de incitação a crimes político-cibernéticos, que envolvem mentiras, intolerância, discursos de ódio e estímulo a golpes, como o que ocorreu em 8 de janeiro de 2023. Em resposta, Musk, acusou a corte de corroer as bases da democracia brasileira, o que levou o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, a classificar suas acusações como “inconformismo antidemocrático”. Batendo bumbo para Musk, o ex-presidente Jair Bolsonaro distribuiu nota na qual afirma que “a salvação da nossa democracia está ameaçada” (sic!).

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Se na última década do século 20 a organização horizontal e descentralizada das redes digitais foi saudada como um avanço da democracia, agora as reações de Musk e Bolsonaro mostram que aquela saudação não tinha fundamento. A história mostrou justamente o contrário, deixando claro que as redes sociais tendem a minar a democracia representativa baseada minar o sufrágio universal. Ela também entreabriu o progressivo enfraquecimento dos Estados na intervenção de determinados processos não apenas políticos, mas, igualmente, econômicos e sociais e até culturais.

Essa é a questão que está por trás do embate entre as instituições democráticas brasileiras e a força econômica de um empresário bilionário com forte protagonismo numa economia globalizada. Essa questão tem sua origem no contexto de cinco revoluções ocorridas durante a transição do século 20 para o século 21. Uma foi a revolução econômica, que aumentou significativamente a autonomia do capital financeiro com relação aos poderes políticos. Outra foi a revolução sociológica, uma vez que os novos métodos de produção desestruturam o mundo do trabalho e, por consequência, a composição social do operariado e da burguesia. Uma terceira revolução foi a tecnológica, que propiciou comunicação em tempo real e a formação de redes sociais. A quarta revolução foi a política, com o enfraquecimento de muitos Estados nacionais frente à hegemonia de poderes econômicos transnacionais. A quinta revolução foi a cultural, que reconfigurou os horizontes de vida dos cidadãos e gerou conflitos de identidade, radicalizando disputas e tornando determinados conflitos não negociáveis.

Como a história revela, em vez de abrir caminho para a construção de formas democráticas mais eficientes e legítimas da vontade política, as redes digitais passaram a divulgar informações altamente destrutivas. Com isso, a comunicação virtual empobreceu a ação cívica. Também introduziu uma lógica de curto prazo e substituiu a formulação de políticas públicas por agitação raivosa e por manifestações antidemocráticas. Ideias, promessas, projetos e alianças passaram a ser minadas do dia para a noite. Em vez de ajudar a moldar o futuro, viabilizando a formação de um consenso em torno de um projeto de nação, as redes digitais reduziram as discussões a um moralismo fundado em pautas simplificadoras para julgar cidadãos comuns e políticos.

Na sociedade digitalizada, tudo funciona a partir de mensagens e discursos que acenam com uma rejeição generalizada ao estado de coisas, prometendo soluções e redenções pela descontinuidade e ruptura da ordem jurídica em vigor. A mobilização por meio de redes sociais possibilita vetos e protestos, mas não o labor argumentativo nem a construção de acordos com base num debate livre e crítico e na priorização de compromissos cívicos. Isto porque, em razão do contínuo fluxo de informações sem filtros nas redes digitais, a maioria dos cidadãos não é capaz de processá-las com a devida precisão.

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Sem informações verazes sobre o que os atores políticos estão falando e fazendo, torna-se difícil para os cidadãos distinguir entre o que é verdade e o que é mentira. Torna-se igualmente difícil identificar. na vida política, uma diversidade de fatores que esclareça os acontecimentos e permita situar partidos e eleitos diante de suas respectivas responsabilidades e obrigações.

Por consequência, o jogo político é reduzido a um confronto entre quem é “amigo” (os patriotas) e quem é “inimigo” (os comunistas), o que conduz o debate programático e ideológico a explosões verbais de populistas, moralistas e aventureiros, como um Órban na Hungria, um Trump nos Estados Unidos e um Bolsonaro no Brasil.

São três políticos cujo desprezo às instituições democráticas tende a crescer quanto maior é a receptividade de suas falas mentirosas e odiosas nas redes digitais. Quanto menos representatividade têm os atores tradicionais, como agremiações partidárias, organizações sindicais partidos e imprensa convencional, mais políticos como esses avançam e maior é a assimetria entre conhecimento e poder. Mais vulnerável fica a sociedade a toda forma de irresponsabilidades e de insensatez. E maior é o espaço deixado a demagogos, militantes fanáticos, militares tresloucados, aventureiros autoritários e bilionários inconsequentes.

A política é uma forma de obter, por meio do diálogo, as condições mínimas de articulação de regras e procedimentos que, além de orientar de modo coerente o cotidiano da máquina pública, permite a definição de objetivos, o estabelecimento de prioridades e a elaboração de estratégias. É pela política que um Estado democrático pode ter, em momentos distintos, distintas funções adequadas a distintos objetivos, E, por sua natureza, essa negociação costuma ser complexa e lenta – portanto, incompatível com a fluidez e com a volatilidade inerentes ao tempo real da era digital.

Por isso, é impossível entender a política fora de um quadro normativo de regras democráticas instituído pelo Estado. Além de ser um mecanismo de um entendimento que processa divergências e compõe soluções, a democracia representativa pressupõe a delimitação de direitos e deveres. Ainda que não seja viável saber o que vai acontecer com a política, uma coisa é certa: ao propiciar fluxos contínuos de todo tipo de informações, sem que ninguém se apresente como responsável por muitas delas, as transformações na tecnologia de comunicações hoje configuram um cenário que a democracia representativa não tem conseguido controlar. O que, por tabela, coloca em risco as liberdades fundamentais à medida que avançam, em velocidade digital, fake news eivadas de demagogia e autoritarismo.

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É justamente por isso que a Câmara dos Deputados tem de votar com urgência o projeto de Lei n° 2630/20, que institui a Lei Brasileira de liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e criminaliza a disseminação de conteúdo falso nas redes sociais e nos serviços de mensagens privadas. Já aprovado pelo Senado, ele aguarda há quatro anos a votação dos deputados - e não é por acaso que a Câmara está dividida nessa matéria, em decorrência da oposição de políticos os bolsonaristas.

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José Eduardo Faria
Professor titular da Faculdade de Direito da USP. Membro do Conselho de Inovação e Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Autor de A liberdade de expressão e as novas mídias (São Paulo, Perspectiva, 2021)
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