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O PL 478/07 e seus retrocessos penais

Por Claudia Cristina Barrilari e Ana Carolina Moreira Santos
Atualização:
Claudia Cristina Barrilari e Ana Carolina Moreira Santos. FOTOS: DIVULGAÇÃO  Foto: Estadão

Ainda que a sociedade civil e o Direito sejam, de forma crescente, chamados a romper o pacto silencioso de neutralização da violência praticada contra a mulher em diferentes aspectos e complexidades, há movimentos que, a pretexto de ampliar a tutela de direitos, findam, por vias reflexas, alijando duras conquistas de defesa dos direitos da mulher.

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É o que ocorre com o Projeto de Lei 478/07, que trata do "Estatuto do Nascituro", cuja premissa é a defesa da vida humana desde a concepção.

Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei, cujo parecer foi apresentado no último 7 de dezembro à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, tem gerado intensos debates entre a Bancada Evangélica, que defende o projeto, e a Bancada Progressista, que defende a ampliação dos direitos reprodutivos da mulher.

Sem prejuízo da necessária proteção das gerações futuras e à parte as implicações no âmbito civil, o texto contempla uma série de violações aos direitos reprodutivos da mulher, mormente quando vítima de violência sexual.

Analisado sob a ótica do Direito Penal, identifica-se um evidente anacronismo com os permissivos legais que, desde 1940, autorizam o aborto em casos específicos.

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Nossa legislação penal, frise-se, desde 1940, admite o aborto apenas diante das específicas condições do art. 128 do Código Penal: quando a gravidez decorra de estupro ou quando há risco de vida à mulher. É importante destacar que, não obstante os avanços globalmente reconhecidos no que se referem aos direitos reprodutivos da mulher e à proteção da sua individualidade e autonomia até certo limite gestacional, o Código Penal mantém-se inalterado há mais de 80 anos ao versar sobre o tema.

Em 2012, o STF, no julgamento da ADPF n. 54, estendeu a possibilidade do denominado aborto legal aos casos de fetos anencefálicos, dada sua incompatibilidade com a vida extrauterina, sendo que, para casos de outras síndromes cujo triste fim será a morte do feto, as mulheres dependem, ainda, de um Poder Judiciário muitas vezes desconectado com as evidências científicas e a proteção da saúde física e psíquica da mulher, orientados por preceitos morais e religiosos.

Na contramão dos debates que envolvem o aborto no mundo, o projeto afasta a permissão em caso de anencefalia, além de impor restrições às hipóteses de aborto legal.

No artigo 13, prevê que "o nascituro concebido em ato de violência sexual goza dos mesmos direitos de que gozam todos os nascituros", decorrendo daí, não só as restrições para o aborto legal, como questões de natureza civil, o que vem sendo trabalhado pelos movimentos feministas de defesa dos direitos reprodutivos das mulheres com os bordões: "estuprador não é pai" e "criança não é mãe", este para a hipótese de gestação de menores de 14 anos que será, sempre, fruto de violência sexual, de acordo com previsão do artigo 217-A do Código Penal, que trata do estupro de vulnerável.

No intenso debate ocorrido na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, na qual o relator do projeto Emanuel Pinheiro (MDB/MT) apresentou seu parecer, a violência de gênero também se fez presente com o tratamento desrespeitoso dispensado pelo Deputado Pastor Eurico (PL) à Deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP). "Se sua mãe tivesse lhe abortado, a senhora não estaria aqui" disse o Pastor Eurico à Deputada, enquanto ela legitimamente manifestava sua oposição ao citado projeto.

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O debate sobre a criminalização/legalização do aborto coloca em lados opostos os avanços científicos experimentados e a evolução na compreensão dos direitos da mulher, inclusive na complexidade dos seus direitos reprodutivos, e movimentos religiosos organizados, que buscam garantir a defesa do direito à vida desde a concepção e sob quaisquer circunstâncias.

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Por outro lado, vive-se um momento global voltado à defesa da igualdade da mulher nas relações sociais, o que intensifica sua proteção em diferentes campos, coibindo toda forma de violência e assegurando o exercício de direitos fundamentais, como o da autodeterminação, da saúde e da própria dignidade humana.

O descompasso entre a lei e a realidade do cotidiano levam a um questionamento das relações de poder que decorrem do patriarcado. A modificação das relações de poder que se consolidaram sob um viés moralista, tirando da mulher o direito de se autodeterminar em relação a seu corpo e suas escolhas, representa, atualmente, um processo de restruturação da dinâmica social, um caminho sem volta que deve se sedimentar na formação cultural da sociedade.

Ao se levar em consideração a realidade social, é notório que abortos ocorrem de forma clandestina, não raro sem os devidos cuidados médicos, vulnerabilizando mulheres em situação socioeconômica desfavorável, estigmatizando-as e submetendo-as ao exercício do controle formal do Estado e ao risco da prisão.

A partir da aceitação da ideia de que a liberdade de tomada de decisão sobre a continuidade ou não da gravidez por parte da mulher é elemento de um novo contexto de sociedade baseado em formas igualitárias de tratamento entre homens e mulheres, abre-se espaço para a revalorização do papel da mulher na sociedade retirando do controle do Estado o exercício de um direito individual.

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Se, de um lado a sociedade vem discutindo meios para garantir a plena igualdade, mediante, dentre outras garantias, o exercício do poder de escolha da mulher, com responsabilidade, sobre a continuidade ou não da gravidez, por outro, movimentos como este expresso no Projeto de Lei, mostram o quanto a autodeterminação da mulher é, ainda, um paradigma de difícil aceitação.

É necessário combater o discurso niilista de que a defesa da descriminalização significa a concordância com o aborto. O aborto é sempre um ato que demanda responsabilidade e gera sofrimento. Métodos contraceptivos, campanhas públicas de controle de natalidade, educação sexual nas escolas são algumas das possibilidades incentivadas como políticas legitimas e eficientes para evitar a gravidez não planejada.

A questão que se coloca cada vez mais na ordem do dia é a necessidade de concretização da autodeterminação da mulher, do seu direito à saúde e ao planejamento familiar, protegendo mulheres e meninas da violência social e estatal.

*Claudia Cristina Barrilari, doutora em Direito Penal pela USP; Ana Carolina Moreira Santos, mestranda em Direito Médico pela UNISA. Advogadas criminalistas

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