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Opinião|Reflexões sobre como lidamos com os mortos na era digital

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Atualização:
Paula Celano. Foto: Divulgação

Dividida entre o espanto e o encantamento, a população brasileira muito teve a comentar acerca da campanha da Volkswagen que se utilizou de Inteligência Artificial (IA) para recriar a persona da renomada (e falecida) cantora Elis Regina em uma interação inédita com sua filha, processo este tipicamente chamado de "deep fake". Por todos os lados, desde comentários nas redes sociais até publicações em veículos especializados, viram-se análises acerca da legalidade e da moralidade da campanha em referência.

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Em meio a chamadas e tiradas sensacionalistas, a questão foi enquadrada como um novo dilema da era da tecnologia, e as consequências do emprego de IAs generativas foi amplamente alardeada. Todavia, um olhar mais atento revela que a raiz deste problema não data de hoje. Pelo contrário, há muitos anos já se questiona os reflexos do "pós-vida", especialmente de pessoas notórias.

Supostamente, em 1924, o autor tcheco Franz Kafka orientou seu amigo Max a destruir seus manuscritos após sua eminente morte por tuberculose. Contrariando as suas orientações expressas, muitos destes textos foram distribuídos resultando em obras póstumas renomadas, como é o caso do livro "O Processo" (publicado pela primeira vez em 1925).

Quase 90 anos depois, dois outros acontecimentos chamam a atenção: a recriação em holograma da imagem do rapper Tupac Shakur (morto em 1996) nos palcos do festival Coachella em 2012, e a restrição de uso de imagem por 25 anos após sua morte, declarada pelo ator Robin Williams (falecido em 2014), conforme testamento descoberto pela mídia[1], segundo o qual também se vedava determinados formatos de utilização.

Não se precisa de muito para que os fãs das franquias de Star Wars e de Velozes e Furiosos rememorem que o mercado cinematográfico é bastante adepto destas "atuações post mortem", vide a "atuação" póstuma do ator Paul Walker em Velozes e Furiosos 7 (2015), a de Peter Cushing em Rogue One: Uma História Star Wars (2016), e a de Carie Fischer em Star Wars: a Ascenção de Skywalker (2019).

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Já em julho deste ano, a cantora Madonna, após um susto hospitalar, orientou seus empresários acerca do uso de sua imagem, proibindo expressamente a criação de hologramas[2] após sua morte.

Embora os casos narrados não tratem efetivamente de IA, é possível reduzir a questão a um denominador comum, qual seja, o questionamento ético acerca de como a sociedade lida com os falecidos, e até que ponto (e com qual liberalidade) se pode explorar suas obras e imagem (o que é feito, por vezes, inclusive contra a sua vontade). Neste cenário, a Inteligência Artificial é apenas outro meio para o mesmo fim. O que apavora, no caso, é o quanto a tecnologia se tornou acessível e sofisticada, e o desconforto que fica ao se perceber a amplitude do que pode ser feito com estas ferramentas.

Neste cenário, é fácil virarem-se os olhares para que os juristas solucionem a questão. Mas não se enganem, o que a sociedade mais precisa hoje é de filósofos. Mesmo porque, o direito já possui as suas respostas, pelo menos para o momento. Tanto a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98 - LDA[3]) quanto o Código Civil (Lei nº 10.406/2002 - CC[4]) estabelecem regras claras que atribuem aos herdeiros o status de guardiões da imagem e obra dos desencarnados. Voltando-se ao pontapé deste artigo, considerando a aparição de Maria Rita na propaganda da Volkswagen, aparentemente uma autorização foi obtida.

Não tendo sido desrespeitada a lei, por que tanto alvoroço acerca deste comercial? A resposta é simples: além de um estranhamento natural ao se depararem com mortos parecendo vivos, muitos de seus fãs questionaram se a cantora teria se associado a campanha em questão. Ou seja, questiona-se se sua vontade em vida teria sido desrespeitada por seus sucessores da mesma forma que teria sido a de Kafka.

Ora, para respeitar ou desrespeitar a vontade dos mortos, não se precisa necessariamente de tecnologias sofisticadas, nem pode o direito prever de forma expressa uma solução para todos os casos concretos que possam ocorrer. Também, embora os avanços da IA tenham inaugurado intensos debates - como é o caso do respectivo comercial e da greve da união de artistas do cinema (SAG-AFTRA) nos EUA[5] - a abordagem do tema não pode ignorar seus benefícios. Como exemplo, tem-se a possibilidade de determinados artistas vivos, afastados por questões médicas, continuarem seus ofícios[6].

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Talvez o que esteja em jogo seja justamente nossa dificuldade humana de lidar com as consequências devastadoras da morte: a continuidade do mundo e a falta total de controle sobre o que fica. A IA e, no caso, as deep fakes, apenas trazem uma nova e mais robusta dimensão para uma questão que existe desde que se tornou possível criar registros para a posterioridade. No campo pessoal, isto se reflete na capacidade da pessoa se autodeterminar e zelar pela integridade de sua imagem após a morte. Eu tenho mesmo o direito de morrer? Deixei este plano mas a sociedade fica com tudo aquilo que produzi e signifiquei, e pode se valer da minha imagem e obra com poucas limitações caso meus sucessores não cuidem (ou entendam) da minha vontade.

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O direito, enquanto instituição, só pode produzir soluções parciais para o problema. Ainda que mutável e sujeito a revisitações, como ocorre hoje em dia ao refletirmos sobre o impacto das IAs e a melhor forma de as regular[7], a norma é nota fria e restrita demais para solucionar urgências de natureza existencial. Em tempos em que as fronteiras do real e do virtual se borram cada vez mais e mais rápido, apenas a filosofia e a ética podem nos socorrer. Enquanto sociedade humana, temos que refletir mais do que nunca sobre o que projetamos para o nosso futuro e, com estes questionamentos, permear o texto normativo que o tornará possível.

*Paula Celano, sócia da área de Propriedade Intelectual, Life Sciences e Entretenimento do BBL Advogados

[1] Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2015/mar/31/robin-williams-restricted-use-image-despite-existing-us-laws   Acesso em 07 ago 2023

[2] Disponível em: https://www.thesun.co.uk/tvandshowbiz/22988839/madonna-strict-rules-hologram-legacy/ Acesso em 07 de ago 2023

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[3] Vide LDA  Art. 24 § 1º e Art. 41.

[4] Vide CC Art. 20.

[5] Disponível em https://www.cnbc.com/2023/07/13/sag-actors-union-goes-on-strike-joining-hollywood-writers.html Acesso em 07 ago 2023.

[6] Embora tenha sido posteriormente desmentida por sua assessoria, a materialização deste exemplo pode ser vista na história de que o ator Bruce Willis teria negociado seus direitos de imagem para continuar ativo após seu diagnóstico de afasia. Disponível em https://www.wired.co.uk/article/bruce-willis-deepfake-rights-law e https://www.estadao.com.br/emais/gente/bruce-willis-vende-imagem-para-empresa-de-deepfake-e-volta-a-tv-entenda/ Acesso em 07 ago 2023.

[7] Vide, por exemplo, o projeto de lei PL 2338/2023 que dispõe sobre o uso de IA.

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