Um dos primeiros casos que levou a Polícia Federal a desconfiar da venda de decisões no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul envolve a briga judicial pela Fazenda Pauliceia, propriedade de 2.530 hectares em Maracaju, polo agropecuário a 160 quilômetros de Campo Grande.
A área é tão grande - o equivalente a 3,5 mil campos de futebol - que abriga diferentes plantações de milho, soja e cereais, além de criações de gado. Produtores rurais arrendam a terra de Marta Martins de Albuquerque, herdeira e proprietária da Pauliceia.
Um desses aluguéis foi feito para o produtor rural Gerson Pieri, em julho de 2015. Ele arrendou 182 hectares para plantar milho por três anos. Nove meses depois, ainda na vigência do contrato, foi procurado pela empresa DMJ Logísticas e Transportes com um aviso para desocupar a área. A empresa alegava ter comprado a terra.
A herdeira da Fazenda Pauliceia, Marta, nega ter vendido a propriedade. “Ninguém, em sã consciência, venderia uma área de 50 milhões de reais por pouco mais de 2 milhões de reais”, alegou no processo.
Na versão dela, Diego Moya Jerônimo, dono da DMJ, e Percival Henrique de Souza Fernandes, dono da PH Agropastoril, tomaram 592 hectares da propriedade. Eles teriam se recusado a receber de volta empréstimos contraídos pela família de Marta, que davam a fazenda como garantia.
Posteriormente, a Polícia Federal descobriu a falsificação de escrituras de compra e venda. Uma perícia atestou que Marta nunca assinou os documentos, registrados no cartório de São Pedro do Paraná, que está envolvido em outros processos por suspeita de fraude. O antigo tabelião perdeu a concessão em meio às suspeitas de irregularidades.
O caso foi parar na Justiça. E as decisões do Tribunal de Mato Grosso do Sul foram favoráveis a Diego. Os desembargadores Vladimir Abreu, Júlio Roberto Siqueira Cardoso, Alexandre Aguiar Bastos e Sideni Soncini Pimentel atenderam a interesses do empresário. Para a PF, as decisões não são meros “erros jurídicos”. “Foram fruto de corrupção”, crava a Polícia Federal no relatório da Operação Ultima Ratio, que investiga um suposto esquema de venda de decisões da Corte estadual.
Diego Moya Jerônimo é sobrinho do conselheiro Osmar Domingues Jeronymo, do Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul, que também é investigado na Operação Ultima Ratio. A Polícia Federal afirma que o conselheiro usou o cargo para influenciar o julgamento e chegou a despachar com magistrados do Tribunal de Justiça.
Procurado pelo Estadão, o advogado Murilo Mendes, que representa o conselheiro, informou que a defesa ainda não teve acesso ao inquérito, mas garantiu que o cliente “não fez qualquer pedido em relação à Fazenda Pauliceia e não possui qualquer relação com a fazenda além do parentesco com os sobrinhos”. “A autoridade policial continua insistindo em ilações comprovadamente infundadas”, diz a defesa.
Todos os citados no relatório da PF foram procurados pela reportagem. Em nota, a defesa do desembargador Sideni Pimentel, a cargo do escritório Bottini & Tamasauskas Advogados, disse que “reitera que todas as decisões exaradas pelo magistrado se deram com base nas provas do processo e no estrito cumprimento da legislação, jurisprudência e doutrina aplicáveis aos casos”.
A PF também recuperou mensagens que indicam a compra de decisões dos desembargadores. Em uma das conversas, o advogado Félix Jayme da Cunha, apontado na investigação como uma espécie de lobista no Tribunal de Mato Grosso do Sul, afirma: “Já segurei lá no gabinete viu, não vão despachar hoje não, vão esperar eu chegar aí, já para nós negociar (sic) para resolver.”
Em um segundo diálogo, com Danillo Moya Jerônymo, outro sobrinho do conselheiro do TCE, o advogado escreve: “Já dei uma mexida hoje cedo com o filho dele lá, ok? E para ver se dá uma monocrática acatando a inépcia. Entendeu? Beleza? Ou excluir, né? Aí é dois preços: um para matar e o outro coiso a gente empurra no Percival.”
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Félix Jayme da Cunha também foi citado no depoimento de outro personagem-chave da briga pela Fazenda Pauliceia: o produtor rural Gerson Pieri. Gerson relatou à PF ter sido atraído ao escritório do advogado em um sábado e ameaçado de morte para abrir mão do contrato de arrendamento que o permitia plantar milho na propriedade. Ele desistiu da ação, o que levantou suspeitas da Polícia Federal, que o intimou a prestar esclarecimentos.
O técnico agrícola alegou ter sido coagido a cancelar o contrato e a pagar honorários ao advogado, cerca de R$ 70 mil. Segundo o depoimento, Diego Moya Jerônymo, sobrinho do conselheiro do TCE, estava na reunião, com “dois ou três capangas” armados.
Quando foi procurado para desocupar sua parte alugada na Fazenda Pauliceia, Gerson já havia registrado um boletim de ocorrência. O documento traz o relato de que um homem armado esteve na propriedade, junto com o advogado Félix Jayme da Cunha, e deu ordens para suspender a colheita. Dois caminhões de milho teriam sido levados por eles.
Em depoimento, Marta confirmou que o produtor foi retirado da área “na marra”: “ameaça com revólver na cabeça, ameaçando a família dele”.
Os caminhoneiros, que estavam com as carretas cheias de milho para levar o carregamento até Cooperativa Agroindustrial de Maracaju, também foram ouvidos pela PF. Um deles reconheceu os sobrinhos do conselheiro, Diego e Danillo, e atestou que os dois estiveram na fazenda naquela noite. Os caminhoneiros confirmaram ainda que Gerson foi ameaçado com um revólver e agredido com um soco e tapas.
“Falei pra minha mulher: Ó, segunda-feira vamos botar nossa terra a venda, eu quero sumir daqui”, confessou Gerson à PF.
COM A PALAVRA, OS CITADOS
A reportagem pediu manifestação dos citados. O espaço está aberto (rayssa.motta@estadao.com e fausto.macedo@estadao.com).