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STF fere o direito à propriedade com decisões sobre marco temporal e função social da terra?

Ives Gandra e Reale Jr divergem em avaliações sobre recentes julgados da Corte máxima

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Por Pepita Ortega
Atualização:
Ives Gandra da Silva Martins diz esperar que o STF ‘respeite' a decisão do Congresso sobre o marco temporal. Foto: Divulgação

Na avaliação do jurista Ives Gandra Martins, as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de derrubar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas e de validar a função social de terras produtivas ferem o direito à propriedade. Já para o professor Miguel Reale Júnior, não há fragilização de tal direito, que tem seus limites.

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As posições divergentes dos renomados juristas refletem como dois julgamentos realizados pela Corte máxima em setembro causaram discussões no mundo jurídico, assim como deram início a um embate entre o Judiciário e o Legislativo.

O posicionamento do Supremo sobre os temas gerou reação do Congresso, a qual se materializou em uma verdadeira queda de braço quanto ao marco temporal, com a aprovação de um projeto de lei validando a Constituição como linha de corte para a demarcação de terras indígenas.

Assim, no olho do furacão, está o julgamento em que o STF, por maioria de votos, reconheceu o direito dos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, independentemente da ocupação na data de promulgação da Constituição cidadã.

Decisão do STF que rejeitou a tese do marco temporal tem gerado embates com o Legislativo, que aprovou projeto para tentar retomar validade da regra. Foto: Carlos Moura/STF

No entanto, outra decisão da Corte máxima que gerou desconforto de parlamentares foi a de rejeitar um pedido de agricultores e pecuaristas para ‘flexibilizar’ trecho da lei da reforma agrária que trata da desapropriação de terras produtivas, mas sem função social. A avaliação foi a de que é ‘pelo uso socialmente adequado que a propriedade é legitimada’.

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O jurista Ives Gandra defende que é necessário interpretar a Constituição literalmente, ou seja, ao pé da letra. Com relação ao julgamento sobre o marco temporal, por exemplo, ele cita a redação do artigo da lei maior sobre as terras indígenas e faz anotações sobre a conjugação verbal usada no texto.

“O artigo 231 reconhece direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam - presente do indicativo. Assim, as comunidades que lá estavam teriam direito de continuar lá. Ocupam, presente do indicativo. Não ‘ocuparam’”, indica.

Em sua avaliação, o STF ‘estendeu’ a interpretação do artigo. Para o jurista, a posição correta do tema é a do Congresso Nacional. O Senado aprovou nesta quarta, 27, um projeto que restabelece a tese do marco temporal.

“Não posso interpretar, aonde está ocupam, como ocuparam. E não posso dar 15% do território nacional pra 1 milhão de brasileiros e estrangeiros e os outros 85% para 207 milhões, em uma interpretação extensiva que interpõe um verbo do presente indicativo para o pretérito perfeito, ‘ocuparam’. Dentro dessa linha, acho que fere o direito de propriedade”, pondera.

O artigo 231 reconhece direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam - presente do indicativo. Assim, as comunidades que lá estavam teriam direito de continuar lá. Ocupam, presente do indicativo. Não ‘ocuparam’

Ives Gandra Martins

De outro lado, o jurista Miguel Reale Jr considera ‘parcial’ a leitura sobre o tempo presente usado no artigo da Constituição que versa sobre terras indígenas. Segundo o professor, tal interpretação ‘esquece o advérbio’: “o texto fala em ‘terras que tradicionalmente ocupam’, ou seja, terras que vem ocupando”.

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”A leitura parcial seria no presente, mas terras que ‘tradicionalmente ocupam’ leva do passado até os dias atuais. A leitura sobre o tempo verbal se prende a uma literalidade manca do texto. ‘Tradicionalmente’ remete obrigatoriamente ao passado. Se fosse presente que o constituinte pretendia se referir, teria escrito ‘terras que ocupam’, somente, e não ‘terras que tradicionalmente ocupam”.

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A decisão do STF de prever indenizações para donos de terras que serão demarcadas reforça o entendimento sobre marco temporal, na visão de Ives Gandra. O jurista evoca a ideia de propriedade e de posse - a primeira relacionada a um título definido e a segunda a um direito adquirido após determinado período de tempo.

“Quando o STF reconhece o direito à indenização, reconhece que as pessoas estavam lá legitimamente, se não, não teriam direito à indenização. Por serem indenizados, eu interpreto que o artigo 231 só poderia ter a legislação dada, escrita, estipulada pelo Legislativo e não pelo STF, que tem apenas que reconhecer a Constituição e não legislar em lugar do Legislativo”, pondera.

Ives Gandra destaca a função do Poder Legislativo de ‘pegar um princípio constitucional e fazer a legislação de aplicabilidade daquele principio’. O jurista diz esperar que o STF ‘respeite a decisão do Congresso’.

“A meu ver o Congresso Nacional decidiu interpretando corretamente o artigo 231 da Constituição Federal e, ao fazer isso, não vejo como não prevalecer o poder legislativo do Congresso no regular da norma e não a legislação interpretada pelo STF - com todo respeito aos ministros - que dá uma extensão maior, mudando o tempo de verbo”, indicou.

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Senado aprovou projeto retomando o marco temporal, o que a Câmara já havia feito, e texto vai para sanção ou veto presidencial. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Função social

Já com relação ao julgamento em que o Supremo validou a função social de terras produtivas, o jurista Ives Gandra faz uma leitura sobre dois dispositivos da lei da reforma agrária: o que estabelece uma série de critérios para que uma propriedade cumpra sua função social; e o que versa sobre propriedades insuscetíveis de desapropriação, entre elas a propriedade produtiva.

A avaliação de Ives Gandra é a de que o artigo 185 da Constituição veda a desapropriação como punição para terras produtivas que não cumpram a função social. “Como o artigo 185 diz que são insuscetíveis para desapropriação as propriedades produtivas, elas podem ser punidas, mas não com desapropriação”, diz.

O entendimento do STF foi o de que só podem ser consideradas terras produtivas as que cumpram a função social. Vez que tal função não fosse cumprida, a terra não deveria ser considerada produtiva e então poderia ser desapropriada.

Em seu voto, o relator, ministro Edson Fachin afirmou ainda que não é possível ‘admitir a desapropriação da pequena e média propriedade rural’, além de distinguir desapropriação - quando há indenização - de expropriação - o que chamou de ‘antítese’ da propriedade.

“Acho que nesse particular, com todo respeito, eu discordo da decisão do STF. Quando a Corte admite que propriedade produtiva pode ser desapropriada, acho que está violando o artigo 185, porque ele prevê que a propriedade produtiva pode receber qualquer tipo de punição, menos a desapropriação”, disse Ives Gandra.

O jurista chegou a lembrar que a questão da reforma agrária foi um dos pontos de maior discussão na Constituinte. “Foi uma das discussões mais intensas naquele período era definir se propriedade produtiva poderia ou não ser desapropriada”, indicou. “Deve prevalecer o que foi discutido a época”, defendeu.

Miguel Reale não vê fragilização e fala em ‘grito’ de ruralistas

Miguel Reale Junior discorda de Ives Gandra Martins e diz que decisões do STF estão em linha com o que diz a Constituição. Foto: Felipe Lampe/Divulgação

Em uma visão diversa da de Ives Gandra, o também renomado jurista Miguel Reale Jr diz não ver ‘nenhuma fragilização’ do direito à propriedade nas recentes decisões do STF.

“A própria Constituição estabelece que a propriedade deve ter uma função social. O entendimento do Supremo está nos limites da Constituição. O direito à propriedade não é um direito absoluto, ele tem limites e um deles é o exercício da função social. A mesma esta descrita no Código Civil”, frisa.

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Na avaliação do professor, a decisão no STF não implica em qualquer alteração. “Trata-se do que já foi estabelecido. Não tem nenhuma alteração profunda. Os ruralistas é que gritam”, indica.

Sobre o Senado aprovar um projeto de lei que recupera o marco temporal como reação à decisão do STF, Reale Jr vê ‘apenas uma manifestação de forças simbólicas do Legislativo’.

“Porque a elaboração legislativa confronta com a decisão do STF. E o Supremo vai declarar que essa lei, se eventualmente não for vetada ou o veto for derrubado, que ela é inconstitucional”, indica. “É uma elaboração natimorta porque contraria a interpretação que do STF. Ela vale como grito”, completa.

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