Bruno Pereira montou equipe de vigilância indígena contra crime no Vale do Javari

Monitoramento nasceu de demanda dos povos do Javari como solução ao arquivamento de denúncias contra infratores na região

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Foto do author Vinícius Valfré
Atualização:

No idioma mayoruna, um jovem alerta por rádio comunicador a presença de “nauas” (não indígenas) no Rio Itaquaí, na Amazônia, dentro de terra indígena. Um kanamari põe no céu um drone e documenta a invasão do território protegido. Em pouco tempo, a polícia terá em mãos o flagrante e a identificação dos caçadores. É a vigilância indígena, que passou a subsidiar a fiscalização oficial e a impor derrotas ao crime dentro da floresta.

Vista aérea do Vale do Javari; região é alvo de ações do crime organizado, mas indígenas da região passaram a monitorar aldeias e enviar informações à polícia. Foto: Wilton Junior/Estadão

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Por trás do trabalho de ensinar matises, kanamaris, mayorunas, kulinas e marubos a operar uma parafernália tecnológica que muitos nunca tinham visto está o indigenista Bruno Pereira, desaparecido desde o último dia 5. A pedagogia foi inspirada na técnica de trabalhar com desenhos que os Médicos Sem Fronteiras usam para ensinar procedimentos a tribos da África. “O Bruno ia com a gente pelo mato, ensinava tudo. A gente trabalha aqui no risco, de noite e de dia para cuidar da nossa terra de todos pescadores e de tudo”, contou um mayoruna que, por medo da reação de criminosos, pediu para não ser identificado.

A vigilância começou a ganhar corpo em setembro de 2021 e em pouco tempo os cerca de vinte indígenas treinados já deram resultados. Bruno queria expandir o projeto para o Maranhão. Além de prejuízos financeiros a caçadores e a pescadores ilegais, eles têm subsidiado a fiscalização em Atalaia do Norte, Tabatinga e Manaus (AM). Ao desaparecer, Bruno Pereira levava à Polícia Federal um novo conjunto de diários, fotos, vídeos e informações georreferenciadas feitos pela equipe.

A ideia nasceu de uma demanda conjunta dos povos do Vale do Javari como solução ao arquivamento de denúncias por “falta de informações qualificadas”. O monitoramento se mostrou necessário por um motivo vital. Os infratores adentram os territórios preservados em busca principalmente de tracajás, pirarucus e antas para vender no mercado paralelo. “São recursos vitais para os irmãos isolados que vivem ali. Estão vulnerabilizando os parentes marubos e temos informações de que está faltando comida para os Korubos”, diz Beto Marubo, principal liderança indígena do Javari, que atua em parceria com Bruno. Como revelou o Estadão ontem, Marubo anda escoltado e está ameaçado de morte.

A equipe de vigilância indígena agora está dedicada a descobrir o paradeiro de Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Ontem, a melhor pista era um trecho de mata revirada na calha do Itaquaí. Até o fim do dia, nenhum sucesso. A Polícia Federal periciou o freezer de pescados de uma embarcação, mas não apresentou avanços.

Apesar de toda a movimentação militar, os indícios de atividade ilegal não param no extremo da Amazônia, na fronteira com o Peru. Um irmão do único suspeito de ligação com o desaparecimento tem percorrido as imediações da base móvel da equipe de vigilância. “O Caboclo está aqui, o freezer dele parece estar cheio de pirarucu. Avisa a polícia e pede pra fazer uma revista, ele está perto do furo do Itaquaí”, alertou um kanamari.

Tesouro

A riqueza extraída por causa de uma fiscalização deficitária é imensurável. Há muito mais riqueza que peixes, ouro e madeira nos rios e florestas do Vale do Javari. Com recentes descobertas de áreas de nióbio, potássio, manganês e óxido de tântalo em outras regiões da Amazônia, o território indígena no extremo oeste do País onde atua o indigenista Bruno Pereira voltou a atrair a cobiça internacional. Possíveis campos de extração de gás e óleo na reserva de 85 mil quilômetros quadrados foram mapeados ainda nos anos 1980, quando a Petrobras realizou pesquisas de campo.

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A ofensiva pelas riquezas do Javari tem outras frentes conhecidas. A atuação de dragas para garimpar ouro, a pesca de espécies raras como o pirarucu, um dos maiores peixes brasileiros, e o comércio de madeira são as mais visíveis delas. Essa cadeia econômica criminosa na região de Tríplice Fronteira tem como liga o tráfico de drogas, que despeja dinheiro e armas pesadas nos municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant.

Bruno Pereira esteve envolvido em todas as mais recentes operações contra o crime ambiental nessa região do Alto Solimões. Em 2019, coordenou a missão policial que resultou na destruição de mais de 40 dragas, um duro golpe no mercado do garimpo. Pouco depois, perdeu a coordenação que ocupava na Fundação Nacional do Índio (Funai) e passou a atuar voluntariamente na União das Organizações Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Passo a passo

A última expedição começou em 2 de junho, uma quinta-feira, quando subiu o Itaquaí para se reunir com a equipe de vigilância indígena, na companhia do jornalista inglês, colaborador do The Guardian que percorre a Amazônia para a produção de um livro. Como os “nauas” não podem entrar no território demarcado, o encontro foi na comunidade do Lago do Jaburu.

No domingo, 5, desceriam o Itaquaí e o Javari com novos dossiês. Tinha uma agenda prevista com a Polícia Federal em Tabatinga. No caminho, parou em uma das comunidades conhecidas por servir de entreposto para narcotraficantes e exploradores para conversar com uma liderança local. E sumiu.

Pouco antes, Amarildo Costa, o Pelado, suspeito preso, passou de barco acompanhando por um outro caçador fazendo intimidações. O Estadão localizou uma das testemunhas que prestou depoimento à Polícia Civil. “Eles levantaram as armas e um deles tinha uma cartucheira na cintura, que não é comum. Eles foram filmados. O Bruno ia levar o vídeo pra PF e agora sumiu tudo”, diz a testemunha kanamari.

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IDH

O prefeito de Atalaia do Norte (AM), Denis Paiva (PSC), negou vínculo com Pelado, único preso por suspeita de ligação com o desaparecimento. Ele visitou a casa do suspeito após a prisão e o procurador municipal chegou a assumir temporariamente a defesa. “Meu histórico não permite isso, meu caráter não permite isso. Quem me conhece sabe. As pessoas querem induzir, colocar palavras na nossa boca. Eu o conhecia, sim. Se disser que não, estou mentindo. Mas não tinha amizade, de compadre, de ele ir na minha casa e eu ir na casa dele”, disse.

Atalaia do Norte tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil (IDH) e o pior do estado do Amazonas. A cidade, afastada do Peru somente pelo rio Javari, é pacata, mas tem um entorno conhecido pela intensa movimentação de infratores. Há influência de narcotraficantes brasileiros, peruanos e colombianos, segundo policiais e pesquisadores. O prefeito reclama do desamparo dos órgãos federais.

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