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Campanhas de Bolsonaro e Lula testam limites do discurso religioso na semana da ‘guerra santa’

Após a retórica messiânica do início da disputa nas ruas, candidatos se preparam para falar aos eleitores de economia, governo e questões da vida real

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Foto do author Beatriz Bulla
Foto do author Roberta Jansen
Por Beatriz Bulla , Pedro Venceslau e Roberta Jansen
Atualização:

SÃO PAULO E RIO – Deus, família e voto foram a trilogia que animou a primeira semana de campanha oficial dos dois líderes da disputa pela Presidência da República no Brasil. Em segundo lugar nas pesquisas, o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, ao lado da primeira-dama Michelle Bolsonaro, focou, no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora (MG), o eleitorado evangélico. Ambos acentuaram ser cristãos – Michelle chegou a dizer que o Palácio do Planalto estava consagrado a “demônios”. O católico Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder da disputa, também recorreu à retórica religiosa. Em comício em Belo Horizonte, abrandou o discurso de esquerda. Prometeu respeitar a Constituição – e a Bíblia. Nesta sexta-feira, 19, sua campanha ensaiou um recuo, enquanto as duas campanhas avaliavam os limites da tática.

“Tenho a certeza de que com paz no coração, com fé e com muito amor os senhores distribuirão justiça para todos do nosso Brasil”, disse Bolsonaro, nesta sexta, na cerimônia de instalação do Tribunal Regional Federal da 6.ª Região (TRF-6), no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, dirigindo-se aos desembargadores da nova Corte. “Agradeço a Deus por essa oportunidade, pela minha segunda vida e pela missão de ser presidente da República.”

O presidente Jair Bolsonaro na cerimônia de instalação TRF-6, em Belo Horizonte; candidato à reeleição foca no eleitorado evangélico Foto: Douglas Magno/AFP

Com esse tom religioso, Bolsonaro parece querer repetir 2018. Naquele ano, o apoio evangélico foi fundamental para a vitória sobre Fernando Haddad (PT). O presidente também parece buscar uma zona de conforto, um espaço onde esteja com boa vantagem sobre Lula, que, segundo as últimas pesquisas, ainda pode vencê-lo no primeiro turno. No mais recente Datafolha, no eleitorado evangélico, ganha por 49% a 32%. Os números gerais são o inverso: 47% para o petista, 32% para o postulante do PL.

Agradeço a Deus por essa oportunidade, pela minha segunda vida e pela missão de ser presidente da República.

Jair Bolsonaro, presidente da República e candidato à reeleição

Aliados de Bolsonaro dizem que o discurso com forte tom evangélico da largada da campanha não faz parte de uma estratégia previamente traçada, mas está no DNA do candidato à reeleição e continuará fazendo parte dos discursos, em especial de Michelle. Ela terá destaque na propaganda eleitoral – uma tentativa de virar o jogo entre as mulheres, segmento no qual o presidente enfrenta rejeição alta. Entre elas, segundo o Datafolha desta semana, a vitória de Lula sobre Bolsonaro é de 47% a 29%.

Segundo esses aliados, os elementos religiosos que pautam os discursos de Bolsonaro continuarão presentes. São quase um instinto de sobrevivência do presidente, assim como a Bandeira do Brasil, o patriotismo e os “valores da família”. A leitura na trincheira bolsonarista, porém, é que o nicho do eleitorado evangélico está consolidado.

Diferentemente do que Bolsonaro diz nas ruas, o foco da narrativa nas redes sociais e especialmente no horário eleitoral na TV deve ser a economia. O objetivo é ampliar o apoio ao presidente entre os mais pobres, com renda de até dois salários mínimos. Nesse público, Bolsonaro se manteve estagnado com 23% das intenções da voto segundo o Datafolha, enquanto Lula lidera com folga – 55%.

Na propaganda, Bolsonaro será apresentado como o presidente que manteve empregos na crise sanitária e garantiu uma vida digna aos setores mais prejudicados pelo isolamento social, como garçons, motoristas e empreendedores que foram beneficiados com isenção de impostos e outras ações do governo enquanto a esquerda defendia o lockdown.

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“O eleitorado evangélico está bem fechado com o Bolsonaro. A campanha será 70% economia e 30% para reforçar a base”, disse ao Estadão o deputado Capitão Augusto (SP), vice presidente nacional do PL e líder da bancada da bala no Congresso.

Em conversas reservadas, outros aliados próximos ao presidente minimizaram os desgastes da primeira semana de campanha – o protagonismo de Lula na posse de Alexandre de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o incidente com um youtuber de direita no cercadinho do Palácio da Alvorada.

Lula agora diz não querer disputar voto religioso

Apesar das referências religiosas do discurso de Lula, sua campanha quer evitar entrar na “guerra santa” que diz estar sendo encampada por Bolsonaro. Aliados do petista avaliam que a batalha de acusações entre “quem é mais cristão” é uma provocação de Bolsonaro que atrapalha o discurso do PT, de mirar as mazelas econômicas. A ideia petista é modular o discurso, buscar o eleitor religioso de forma menos ostensiva que a campanha do principal rival e acusar os bolsonaristas de usarem de má-fé ao misturar religião e política. O objetivo parece ser levar a disputa para o campo mais amplo da política, onde o PT avalia levar vantagem.

A estratégia consiste em dizer que política não deve se misturar com religião – ao mesmo tempo em que o ex-presidente se apresenta como um homem que acredita em Deus. Trata-se, de certa forma, de uma busca pelas origens do PT. O partido nasceu com um forte setor baseado nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. O movimento vinculava o cristianismo à luta pela justiça social – uma visão desbancada, entre os pobres, pela “teologia da prosperidade” do neopentecostalismo.

O ex-presidente Lula durante comício em Belo Horizonte; petista ‘guerra santa’  Foto: Washington Alves/Reuters

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O próprio Lula deu o tom do discurso nesta sexta-feira, ao responder a perguntas de jornalistas no QG da campanha presidencial, em São Paulo. “Eu não quero ficar disputando o voto religioso porque não faz parte da minha cultura política estabelecer qualquer princípio de guerra santa na política. Eu quero discutir política quando vou na rua e nos partidos. Quando vou para a igreja eu quero discutir a minha fé, discutir religião, quero conversar com Deus, eu não quero saber de política”, disse Lula.

Em busca de uma espécie de blindagem, Lula também tem citado duas leis aprovadas no seu governo: a da liberdade religiosa e a que criou o Dia Nacional da Marcha para Jesus. “Não é a primeira campanha que eu disputo. Eu nunca usei religião na minha campanha. Eu acho que, quando um ser humano, homem ou mulher, vai à igreja, ele vai tratar da sua fé, da sua espiritualidade, ele não vai lá para discutir política. Eu não participarei disso. Eu quero conversar com os eleitores brasileiros enquanto cidadãos brasileiros”, disse Lula.

Eu nunca usei religião na minha campanha. Eu acho que quando um ser humano, homem ou mulher, ele vai à igreja, ele vai tratar da sua fé, da sua espiritualidade, ele não vai lá para discutir política.

Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e candidato do PT na disputa pelo Planalto

Foco no Sudeste

O foco da campanha do petista seguirá no Sudeste nos próximos dias, região que concentra 43% do eleitorado e onde Bolsonaro tem ganhado fôlego. Neste sábado, 20, Lula fará um comício em São Paulo, no Vale do Anhangabaú.

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A avaliação dos aliados do presidente é que, apesar do crescimento de Bolsonaro, a última pesquisa Datafolha traz motivos para o PT comemorar. O fato de Lula seguir com folga na dianteira entre os beneficiários do Auxílio Brasil turbinado foi visto com alívio.

A despeito de avaliações internas de que ainda não houve tempo suficiente para que o pagamento do auxílio se traduzisse em apoio a Bolsonaro, os aliados do ex-presidente consideram que a manutenção de sua boa posição entre essa fatia do eleitorado é a prova de que Lula é o nome associado aos programas de transferência de renda e combate à pobreza. Por isso, a campanha pretende seguir com a mensagem nas redes sociais de que o pagamento do Auxílio Brasil é eleitoreiro e que a eleição de Bolsonaro pode ameaçar a continuidade do benefício.

Além disso, a campanha minimiza o crescimento de Bolsonaro entre eleitores que recebem de dois a cinco salários mínimos. A avaliação entre os petistas é de que a melhora nos números de Bolsonaro é muito lenta e incapaz de virar o jogo a favor do presidente, que não tem mais coelhos na cartola para usar daqui até a eleição.

“Sinceramente, eu não vi o avanço do Bolsonaro na campanha. Eu vi a manutenção da nossa campanha muito à frente do Bolsonaro. Eu vi um crescimento que está dentro da margem de erro, que pode cair na próxima pesquisa, na próxima semana. O que eu acho é que nós estamos com uma campanha consolidada junto à sociedade brasileira”, disse Lula, nesta sexta, após reunião com o candidato a vice, Geraldo Alckmin (PSB).

Pesquisadores criticam pegada religiosa

A pegada religiosa dos líderes da campanha presidencial não é coerente com as pesquisas de opinião. Levantamento Genial/Quest de agosto, por exemplo, apontou que, para 40% dos eleitores, o principal problema do Brasil é a economia; para 21%, questões sociais; para 15%, outros; para 13%, saúde/pandemia; para 7%, corrupção; 3% não souberam/não responderam. Para 52% dos entrevistados, a economia no último ano piorou, e para 48%, a capacidade de pagar contas nos últimos três meses foi no mesmo caminho. Inflação (para 15% dos entrevistados) e desemprego (13%) lideraram como os piores problemas econômicos.

O cientista político José Álvaro Moisés, do Instituto de Estudos Avançados da USP, disse acreditar que a estratégia da “guerra santa” adotada pela campanha de Bolsonaro e espelhada pela de Lula “é de mau gosto e inadequada”. “Sobretudo ao combinar valores religiosos com política, o que não é bom para a democracia.” Em sua análise, trata-se de “um apelo meio desesperado”.

Moisés afirmou considerar “estranha” a estratégia do presidente de focar nos evangélicos. Segundo o cientista político, o crescimento neste segmento pode até acontecer, mas é limitado. Neste momento, o objetivo da campanha de Bolsonaro, em sua opinião, deveria ser tentar angariar mais votos na maior parcela da população – a que recebe até dois salários mínimos.

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“Para crescer neste segmento, Bolsonaro teria de falar de questões econômicas, desemprego, inflação”, afirmou Moisés. “Não basta oferecer o Auxílio Brasil, além da redução dos combustíveis e do auxílio aos taxistas, seis meses antes da eleição. É um indicador muito forte de compra de votos com dinheiro público. E acho curioso que os estrategistas da campanha não achem que o eleitor percebe isso.”

A antropóloga Isabela Kalil disse acreditar que a estratégia de Bolsonaro ao focar no público evangélico é, em parte, uma reação ao aceno de Lula ao segmento religioso. “Até agora, Lula não fez um grande aceno para nenhum setor, mas acenou para o eleitor evangélico”, lembrou Isabela. “Se o Bolsonaro não fizesse nada, ele corria o risco de perder a sua base para Lula. Numa eleição tão acirrada, perder parte da base pode fazer toda a diferença.”

Parte dos eleitores evangélicos, sobretudo as mulheres, na análise da antropóloga, tinha se afastado do presidente por causa de sua atuação durante a pandemia, quando zombou dos pacientes, adotando posturas muitas vezes tidas como desrespeitosas.

“Bolsonaro poderia adotar outra estratégia, teoricamente mais bem sucedida? Sim, acho que teria muito espaço, sobretudo se explorasse a questão da economia”, disse Isabela, que é coordenadora do curso de Sociologia e Política da Fesp-SP. “Talvez não seja a melhor estratégia, mas entendo por que ele a adotou. Ele precisa se voltar ao eleitor que é mais próximo de seu habitat, e ele sabe falar com essas pessoas, está à vontade. Por outro lado, olhando para a estratégia de 2018, vemos que ele teve uma campanha segmentada. Ele usou e abusou da possibilidade de não ter coerência em determinados discursos e deu certo. A pergunta é: será que vai dar certo em 2022?”

Para o cientista político Rafael Cortez, sócio da consultoria Tendências, a mobilização do voto conservador por meio do debate moral e religioso é uma estratégia que pode, em alguma medida ao menos, produzir efeitos positivos na campanha de Bolsonaro.

“Há uma importância estratégica de mobilizar esse voto. O antipetismo se alimenta desse debate, sobretudo na atual conjuntura de desgaste da esquerda”, disse Cortez. “Dado que o debate econômico não é positivo para o governo, ao contrário, é uma das razões para sua rejeição elevada, o debate religioso é um mecanismo de mobilizar o antipetismo e de tirar o foco de questões que atrapalham o governo”, afirmou.

Ainda na análise de Cortez, é natural que Lula responda pontualmente às questões religiosas ou morais. “Mas, se fizer desse debate um protagonista de sua campanha, não conseguirá avançar muito”, disse 0o cientista político. “O calcanhar de Aquiles da campanha bolsonarista é justamente a questão da vulnerabilidade social, há uma série de indicadores econômicos muito negativos. Esta deve ser a estratégia central da campanha petista. Lula não pode ficar refém da agenda religiosa.” / COLABOROU IANDER PORCELLA

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