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Opinião|A Era das Inocências e a relação espúria entre a absolvição de Moro no TSE e os reveses da Lava Jato

Não é possível equiparar, ou usar como evidência da existência de uma anistia informal, uma ação na Justiça Eleitoral que analisa o mérito de uma acusação e outras que, em vez de tentarem provar inocências, se valem de filigranas processuais

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Foto do author Diogo Schelp

Se for para escolher um marco temporal, a terceira semana de maio de 2024 bem que pode vir a ser lembrada como o auge — ou início, quem sabe — da Era das Inocências na política brasileira. A semana que passou foi marcada por decisões judiciais de grande repercussão que beneficiam políticos e empresários. O ex-ministro José Dirceu conquistou, em uma das turmas do STF, a extinção da sua pena por corrupção passiva, em condenação de 2016 no âmbito da Lava Jato (o juiz era Sérgio Moro).

Todos os processos e investigações contra o empresário Marcelo Odebrecht, um dos protagonistas da Lava Jato, foram anulados em decisão individual do ministro Dias Toffoli, do STF, que entendeu ter havido conluio processual entre Moro e os investigadores da operação anticorrupção. Esse argumento ainda pode render a anulação de muitos agentes públicos e privados expostos pela força-tarefa de Curitiba.

Estátua da Justiça, em frente ao STF. Foto: Dida Sampaio/Estadão

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No Rio, uma decisão da Justiça Eleitoral, ainda que sem relação com a Lava Jato, contribuiu para a percepção de que os ventos da semana sopravam contra a vela da punição aos maus políticos. O TRE-RJ, em votação apertada, rejeitou a ação que pedia a cassação dos mandatos do governador Claudio Castro, de seu vice, Thiago Pampolha, e do presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar, apesar da profusão de evidências de um esquema com dezenas de milhares de apadrinhados políticos em cargos fantasmas em órgãos do estado. A maioria dos juízes entendeu que a influência do esquema no resultado da eleição de 2022 no estado não havia ficado provada, e que os aspectos penais e administrativos do caso precisavam ser julgados em outras instâncias.

No pacote de absolvições da semana foi incluído o julgamento do recurso no TSE que pedia a cassação de Sérgio Moro, acusado de poder econômico e caixa 2 na campanha de 2022. Moro foi absolvido por unanimidade e, com isso, manteve sua cadeira no Senado. A pressa do ministro Alexandre de Moraes em colocar o recurso contra Moro para julgamento antes do fim do seu mandato como presidente do TSE e o fato de o agora senador ter sido absolvido na mesma semana em que as condenações que ele impôs quando juiz — a José Dirceu e a Marcelo Odebrecht — foram anuladas no STF parecem confirmar as informações de bastidores de que um grande acordão foi fechado para enterrar de vez as esperanças de fim da impunidade a corruptos, ao mesmo tempo em que se perdoa — e se incorpora ao status quo político — o antigo e principal algoz dos corruptos.

Há, contudo, uma certa inconsistência na versão de que a recusa do TSE de cassar Moro é uma contrapartida ao desmantelamento de punições a crimes revelados pela Operação Lava Jato. Ou, mesmo, de que seria uma forma de os ministros do STF, alguns dos quais compõem o TSE, reduzirem as tensões com o Congresso.

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O primeiro sinal de inconsistência é o fato de que as acusações que procuravam despir Moro do seu mandato de senador não tinham relação alguma com os casos da Lava Jato ou com os métodos para lá de questionáveis do ex-juiz no auge da operação. Isso não estava em discussão no julgamento no TSE, ainda que alguns ministros tenham aproveitado seu voto para fazer críticas ao comportamento antiético de Moro nos idos da Lava Jato. Críticas essas, aliás, que demonstram o quanto Moro ainda desperta o desprezo de integrantes da cúpula do Judiciário, um sentimento que não contribui em nada para a acomodação ou disposição à anistia.

Segundo, no julgamento de Moro, ao contrário de todos os reveses da Lava Jato até aqui, analisou-se o mérito das acusações. À luz do Direito Eleitoral, não havia provas de irregularidades na campanha de Moro ao Senado ou de que a sua vitória na eleição tenha sido facilitada por sua fracassada tentativa de concorrer à Presidência. Nas decisões que favoreceram Dirceu e Odebrecht, ao contrário, não houve julgamento de mérito. Não foram inocentados. As anulações das suas condenações ou punições se deram por questões processuais.

O crime de Dirceu estava prescrito e ele não poderia ter sido condenado. Já os atos processuais e investigatórios contra Odebrecht foram completamente anulados não porque os fatos narrados por ele em delação fossem inverídicos, mas porque, segundo o ministro Dias Toffoli, o empresário os confessou sob pressão de um “incontestável conluio processual” existente no âmbito da Lava Jato. Mas nada que justifique a anulação também dos benefícios da delação, claro. Por isso, não é possível equiparar, ou usar como evidência da existência de uma anistia informal, uma ação na Justiça Eleitoral que analisa o mérito de uma acusação e outras que, em vez de tentarem provar inocências, se valem de filigranas processuais — ou mesmo de grande criatividade interpretativa — para obter a impunidade.

Terceiro, é incoerente buscar uma relação de causa e efeito entre a absolvição de Moro no TSE e o desmantelamento em série dos efeitos jurídicos da Lava Jato, que já vem ocorrendo há alguns anos no STF. É possível traçar uma linha de continuidade da decisão de Toffoli que beneficiou Marcelo Odebrecht, por exemplo, que vem, pelo menos, desde a anulação das condenações de Lula, há três anos. Com ou sem julgamento de Moro no TSE, a canetada camarada de Toffoli ao empresário teria ocorrido de qualquer jeito.

Elimina-se a variável explicativa e o resultado que se tem é o mesmo. Ou seja, ligar a absolvição de Moro aos reveses recentes da Lava Jato, como se fosse tudo parte de um conluio por uma anistia que beneficia os dois “lados” dessa história, é o que em estatística se costuma chamar de “correlação espúria”. Não há relação de causa e efeito entre os dois fatos, apenas algumas coincidências ou, no máximo, a influência de uma variável oculta — portanto de algo que impacta os dois eventos de forma independente.

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Qual poderia ser essa variável oculta? Em seu voto que ajudou a absolver Sérgio Moro no TSE, o ministro Kassio Nunes Marques disse que a ação para cassar o mandato do senador era mais uma faceta da “criminalização da política”. Essa expressão era usada pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras, por exemplo, para criticar o esforço da Lava Jato para ir ao encalço de políticos.

Em vez de um conluio para anistiar algozes e réus da Lava Jato, estaríamos vendo o descortinar de algo mais amplo, a Era das Inocências, em que predomina a disposição da Justiça em todos os níveis de pegar leve com políticos e figurões, culpados ou não, sob o espírito da “descriminalização da política”?

Opinião por Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

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